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Mostrando postagens de 2018

Minhocão, do tico-tico aos murais

O primeiro lugar em que morei foi um apartamento na Bela Vista, na rua Martinho Prado, no prédio onde funcionou por muitos anos o Ferro’s Bar, primeiro ponto de encontro de mulheres gays na cidade. Claro que eu não sabia disso, já que me mudei de lá aos cinco anos. Segundo o jornalista Mouzar Benedito, no Blog da Boitempo [M1]   , até 1964, ano em que nasci e em que houve o golpe militar, o bar era frequentado por militantes comunistas, mas com as perseguições que se seguiram passou a ser ocupado pelas lésbicas. A repressão ao local continuou, como se pode imaginar, mas era de outra natureza [M2]   e não é essa história que eu queria contar. Falando do que me lembro sobre esse meu primeiro endereço, meu parquinho era a praça Roosevelt e, este é o ponto, andava de tico-tico (para quem sabe o que é isso) no Minhocão, enquanto estava sendo construído. Acho que meu pai me levava lá nos fins de semana, quando não havia obras (nem sei se aconteceu mais de uma vez), mas é uma imagem qu

Sandubas tradicionais paulistanos são para os fortes

Há pelo menos três sanduíches tradicionais paulistanos: o Bauru do Ponto Chic, o de mortadela do Mercado Municipal e o de pernil do Estadão. Todos são deliciosos, todos têm por base o pão francês – típico da cidade -, todos são exagerados. Isso significa que é praticamente impossível comer sem se lambuzar e devorá-los por inteiro é para os fortes. O Bauru do Ponto Chic, diz a lenda, foi criado nos anos 1930 por um dos alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco que frequentavam o bar no Largo do Paissandu, cujo apelido era o nome de sua cidade natal e acabou batizando também o sanduba. Embora se possa comer bauru em qualquer padaria paulistana – sanduíche caracterizado por ser um misto quente (queijo e presunto) com tomate -, o do Ponto Chic é muito mais incrementado: inúmeras fatias de rosbife, tomate em rodelas, pepino em conserva e uma mistura de quatro tipos de queijos fundidos em banho-maria (prato, estepe, gouda e suíço). Hoje pode ser encontrado nas três lojas do

Literatura que vem da África será destaque na Flip

O que uma mulher, que se sente inadequada com seu corpo – e carrega esse peso real e metafórico – por toda a sua vida, tem em comum com outra mulher, que se sente insatisfeita no papel de mãe e se apoia em uma babá para se realizar profissionalmente, e essas duas com um porco-espinho condenado a ser o duplo de um humano e fazer maldades em seu lugar? Aparentemente nada, a não ser o fato de serem personagens de três livros escritos por autores nascidos na África e revelados para a literatura na Europa. Isabela Figueiredo, autora de A Gorda , é moçambicana, filha de portugueses, e se mudou para Portugal após a independência da colônia; Leila Slimani, autora do best-seller Canção de Ninar , nasceu no Marrocos e vive na França; Alain Mabanckou, autor de Memórias de Porco-espinho , é natural da República do Congo, despontou para a literatura na França e hoje mora nos Estados Unidos. Os três estão entre os escritores convidados da próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip),

Agrotóxico é veneno, não adianta maquiar o nome

Já entrevistei muito agricultor na vida e nunca vi nenhum chamar agrotóxico de defensivo agrícola. Para eles, a coisa chama veneno mesmo. Isso significa que agrotóxico já é o nome bonzinho para um produto desenvolvido para matar – insetos, plantas invasoras e outras “pragas” que podem atacar a plantação. O grande desafio no uso desses venenos é dosar a quantidade para que mate o que atrapalha sem destruir a cultura que se quer proteger. Para os fabricante, se prejudica a saúde do agricultor (ou do consumidor), é um detalhe bem ilustrado pela luta empreendida pelas empresas produtoras desses químicos contra toda legislação que tenta restringi-los. Ao invés de procurar fazer que seus produtos sejam cada vez menos tóxicos, em geral, a indústria prefere investir em propaganda ou no desenvolvimento de espécies resistentes ao veneno, seja pelo processo da seleção natural, seja via transgênicos. Esse é o caso do defensivo Roundup, nome comercial de um herbicida fabricado pela Monsanto c

A pintora e o revolucionário: quando ficção parece realidade que parece ficção

A melhor parte de ler livros que romanceiam acontecimentos históricos é humanizar os personagens e trazê-los para um mundo mais palpável. Por outro lado, podem nos fazer cair na armadilha de tomar ficção por realidade e não termos mais como diferenciar o que realmente aconteceu do que foi inventado. Isso está particularmente na moda quando se trata de autobiografias. O autor se protege mudando nomes, fantasiando alguns fatos, mas todo mundo sabe que trata-se da vida dele, só que não temos como separar as duas coisas. É superlegítimo, instiga, não tira o prazer da leitura, mas confunde. Quando é um romancista partindo de uma fato que conhecemos, mas não muito, e sobre o qual há pouca informação disponível, esse efeito é mais forte ainda. Mesmo sabendo que o que está sendo contado não é exatamente verdade, nossa mente registra a informação como tal e isso mistura com o que sabemos mais ou menos e pronto: temos uma nova versão particular reinventada. Se já passamos pelo vestibular,

Sesc 24 de Maio é oásis de modernidade no Centro

Fui conhecer o Sesc 24 de Maio, inaugurado no ano passado no antigo prédio da Mesbla, no Centro - destino que tem se tornado constante, com mais surpresas positivas do que negativas. Desci na estação Anhangabaú do metrô, que é um pouco mais longe do que a República, mas o caminho é bem bacana, passando pelo Teatro Municipal. Me desafiar a fazer um passeio por semana a lugares diferentes tem me feito (re)descobrir a cidade real, longe da cidadela Zona Oeste onde me refugiei. Andar a pé, de metrô, descobrir caminhos com a escala do pedestre tem sido gratificante. Talvez isso aconteça por ser o que eu disse – passeio. Quando só usava transporte público, meu esgotamento era patológico. Venci meu medo de dirigir e comprei um carro para não desistir de estudar e ter um pouco mais de vontade de trabalhar. De dentro do carro a vida fica mais fácil, mas cria uma dependência da qual estou tentando me libertar. A primeira impressão ao chegar no prédio do Sesc, lindamente reformado a parti

Ecofalante: uma mostra necessária

A 7ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental termina hoje, depois de duas semanas, quando exibiu mais de 120 filmes de 31 países, gratuitamente, em vários espaços de São Paulo, além de realizar debates, oficinas e prêmios. Nesta edição, assisti a quatro filmes, com temáticas diferentes e bastante contundentes. Fiquei feliz porque todas as seções a que estive estavam lotadas – porém foram acompanhadas de debates, então não sei dizer se foi uma constante. Mas uma coisa é certa: a mostra vem crescendo muito e deve aumentar ainda mais nos próximos anos, tanto porque o público vem aprendendo a assistir documentários quanto porque a temática socioambiental ambiental vem ganhando adeptos. Acredito que o interesse por documentários venha da maior difusão deste tipo de filme a partir das TVs pagas e streaming, mas também da pouca profundidade e credibilidade tanto da imprensa tradicional quando das redes sociais. Notícias rápidas cansam e não satisfazem, as pessoas buscam nos documentários

Me chame pelo seu nome, porque eu me desejo através de você

Mais do que um amor de verão, o romance entre Elio e Oliver, em “Me chame pelo seu nome”, de André Aciman, é uma paixão daquela fase em que estamos descobrindo a sexualidade e como lidar com ela. Daquelas onde a pessoa amada é idealizada como uma projeção de nós mesmos e da ideia que fazemos do amor. O fato dos personagens passarem a chamar um ao outro pelo seu próprio nome parece ser uma forte representação disso. Essa foi a impressão mais forte que ficou deste livro do mês, na última reunião do CFL-Círculo Feminino de Leitura. Foi mais uma obra da nossa lista de autores que estarão na próxima Flip, em julho, em Paraty, onde vamos comemorar os 10 anos do nosso grupo [há mais três na nossa mira até a viagem]. Mesmo não tendo sido uma unanimidade – parte adorou (foi o meu caso!), parte achou apenas uma história de amorzinho -, todas achamos um mérito do livro o fato da homossexualidade não ser uma questão tão relevante na narrativa. Poderia ser contada com qualquer tipo de casal –

Nostalgia do que não vivi

Visitar a Casa da Imagem, para qualquer paulistano ‘da gema’, é como viajar no túnel do tempo e sentir saudade de uma cidade que não existe mais, ou ainda, acompanhar as diversas cidades que foram se transformando e sobrepondo para desembocar nesta que habitamos hoje. Este museu, localizado próximo à Praça da Sé, ao lado do Pátio do Colégio, faz parte do Museu da Cidade de São Paulo, responsável por 13 edificações históricas que exemplificam a evolução das técnicas construtivas da cidade (várias delas não sabia que existiam), entre as quais estão também o Solar da Marquesa de Santos, separado da Casa da Imagem pelo Beco do Pinto, sobre o qual falarei daqui a pouco. A Casa da Imagem abriga o Acervo Iconográfico de São Paulo, composto por 84 mil fotografias, das quais 140 estão expostas aos visitantes. Elas mostram São Paulo em diversas fases desde a segunda metade do século XIX, quando era uma cidadezinha, antes de se tornar a metrópole do café. Dá para acompanhar o cresciment

O que nos diz o cabelo crespo

Há sempre uma história por trás de um cabelo crespo. Assim como o gênero e a cor da pele, a textura das madeixas conferem status e estereótipos de todo tipo. Cresci ouvindo na família que minha “gadeia” não tinha jeito (mais tarde soube que era a maneira caipira de se dizer gadelha: o mesmo que cabeleira, cabelo disforme), condenada a usar, em grande parte da infância, o corte “Joãozinho”, para não dar trabalho. Nem tinha cinco anos e já me frustrava por não ter os cabelos na cintura e lisos como os da Wanderleia, para poder dançar e chacoalhá-los ao vento. Não é de admirar que, tão logo pude administrar meus problemas capilares, estes passaram a ser de outra natureza: lidar com químicas, toucas e escovas, sempre com resultados efêmeros ou pouco satisfatórios. Só muito mais tarde pude constatar que minha musa teve que passar pelos mesmos dramas que eu até assumir sua juba original. Durante toda a vida lidei com os sentimentos contraditórios dessa herança latina, que no contexto

Há muito mais que cobras e lagartos no Butantan, mas eles ainda são a atração principal

Apesar de um certo incômodo ao dar de cara com jiboias, jararacas, pítons e afins, às vezes te encarando nos olhos, a visita ao Instituto Butantan é sempre um programão. A começar por ficar em meio a uma belíssima área verde, que já vale sozinha o passeio. O fato de poder entrar com o carro e estacionar gratuitamente é quase um milagre em São Paulo e também é um belo convite. Além disso, o ingresso é baratinho (R$ 6,00 o mais caro, para adultos, após vários tipos de isenções e descontos) e vale para os três museus do complexo: Museu Biológico, Museu Histórico e Museu de Microbiologia. Dá para passar um dia inteiro – pena que fecha relativamente cedo (o funcionamento é de terça a domingo, das 9h às 16h45). Mas é claro que a atração principal é o Museu Biológico, com suas serpentes lindas e assustadoras, divertidos lagartos, iguanas e sapos, e os MUITO assustadores aranhas e escorpiões. Confesso que todas as vezes que estive lá, passei correndo por estes últimos. Também tenho dúv

Memorial da Resistência: o que o passado nos diz sobre o presente?

O maior impacto de se visitar o Memorial da Resistência é chegar até lá, antes de entrar. Um verdadeiro soco no estômago. Localizado há uns três quarteirões da Estação da Luz, logo atrás da Sala São Paulo, este museu está instalado na Estação Pinacoteca, em um prédio tombado construído para ser estação ferroviária, mais tarde substituída pela Júlio Prestes, e onde funcionou por 42 anos (entre 1941 e 1983) o famigerado Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, o DEOPS/SP. Sua proposta é nos conectar com um passado de repressão política pouco lisonjeiro e que nos envergonha como país, mas dar de cara com a marquise do edifício tomada por pessoas vivendo ao relento ou em barracas precárias, em meio a excrementos e restos de comida dos quais precisamos desviar, faz do presente algo intolerável. Se as atrocidades cometidas pelos diversos regimes autoritários que formaram o Brasil, sobretudo o regime militar pós-64, que usou aquele espaço para torturar e matar, é al

Sesc Paulista: novo destino para sentir a cidade de cima

A inauguração de um novo Sesc é sempre motivo de agito na cidade. Em cada canto em que há uma unidade, há cultura, há cidadania, há inclusão. Quando isso acontece em plena avenida Paulista, a expectativa só pode ser triplicada. Aberto há pouco mais de uma semana, o Sesc Paulista se transformou no assunto, o lugar que todos precisamos conhecer. Não resisti. Fui no sábado, um pouco receosa de ainda encontrar ecos das filas que aconteceram durante o feriadão. Mas elas não haviam, apesar do movimento intenso. Entrar em prédio, em plana Paulista, sem precisar se identificar ou passar por nenhuma catraca já vale a visita. Entendo todas as formas de medo e necessidade de segurança de nossa sociedade, mas a sensação de ser bem-vinda que entrar e seguir diretamente para o elevador, sem interrupções, dá é muito boa. O destino de praticamente todos que chegam é o mirante na cobertura. Já ponto obrigatório dos visitantes da cidade. No Instituto Moreira Salles, na outra ponta da ave

As zonas de São Paulo

São Paulo é uma cidade em formato de cruz (com dois lados bem mais compridos que os outros dois), que divide seus moradores em grandes tribos. Com todo esse tamanho, você mora de verdade em um dos grandes bairros guarda-chuvas, que grosso modo correspondem às subprefeituras. Mas a cidadania é dada pela região ou zona: você é da Zona Norte, Zona Oeste, Zona Leste ou Zona Sul, ou resumidamente da ZN, ZO, ZL ou ZS, ou do Centro. É isso que vai te dar identidade de vizinhança. Nasci no Centro, mas fui criada na ZN, que nos anos 1970 não diferia muito de uma cidade do interior bem provinciana. As casas tinham quintal, os portões ficavam abertos, as crianças brincavam na rua. Isso acontecia também outras partes da cidade, mas quando vou até lá hoje em dia – praticamente apenas para visitar meus pais -, é como se voltasse para casa e a qualquer momento fosse encontrar algum amigo de infância – o que nunca acontece. A ZO, onde vivo há mais de 20 anos, é como se fosse a cidade escol

O incômodo Caderno Rosa de Lory Lamb

Participo de um grupo de leitura o qual chamamos Círculo Feminino de Leitura (CFL), que completa em julho próximo 10 anos. Somos 11 mulheres que se reúnem mensalmente (entre fevereiro e dezembro) para discutir um livro indicado normalmente pela anfitriã do mês, além de dividir nossas experiências, alegrias e tristezas. Nesse período, lemos e discutimos mais de 130 livros, dos mais diversos gêneros e nacionalidades. Para comemorar nossos 10 anos, achamos que nada melhor do que realizar um sonho antigo e nos reunir na Festa Literária de Paraty. Já reservamos uma pousada e apenas uma de nós, que atualmente mora nos EUA, ainda não conseguiu confirmar. Como parte de nossa preparação, resolvemos que até a viagem vamos ler livros relacionados à Flip. Acabamos de discutir O Caderno Rosa de Lori Lamby , da autora homenageada Hilda Hilst. É preciso que se diga que ninguém ficou indiferente à Lory Lamb. Umas adoraram, outras odiaram. Incumbida de puxar a discussão sobre o livro pornô ch