Há sempre uma história por trás de um cabelo crespo.
Assim como o gênero e a cor da pele, a textura das madeixas conferem status e
estereótipos de todo tipo. Cresci ouvindo na família que minha “gadeia” não
tinha jeito (mais tarde soube que era a maneira caipira de se dizer gadelha: o
mesmo que cabeleira, cabelo disforme), condenada a usar, em grande parte da
infância, o corte “Joãozinho”, para não dar trabalho. Nem tinha cinco anos e já
me frustrava por não ter os cabelos na cintura e lisos como os da Wanderleia,
para poder dançar e chacoalhá-los ao vento. Não é de admirar que, tão logo pude
administrar meus problemas capilares, estes passaram a ser de outra natureza:
lidar com químicas, toucas e escovas, sempre com resultados efêmeros ou pouco
satisfatórios. Só muito mais tarde pude constatar que minha musa teve que passar
pelos mesmos dramas que eu até assumir sua juba original.
Durante toda a vida lidei com os sentimentos
contraditórios dessa herança latina, que no contexto racista brasileiro tem
variadas conotações. Por um lado, o volume dos cabelos me conferia poder,
sensualidade. Quando me vejo em fotos assim, me acho mais bonita. Nos meus
momentos mais segura de mim, sempre optei pelo cabelo natural. Por outro lado,
os cabelos alisados conferem uma aceitabilidade reconfortante. Por incrível que
pareça, te tratam melhor nas lojas, mexem menos com você na rua e, até hoje, se
escovo os cabelos, a mulherada – sobretudo – invariavelmente diz como estou
linda e chique. Minha autoestima vacilante é bastante suscetível.
Eis que, na busca por autores que estarão na próxima
Flip, em Paraty, onde vamos comemorar os dez anos do CFL-Círculo Feminino de
Leitura, nos deparamos com Djaimilia Pereira de Almeida, com seu Esse Cabelo – A tragicomédia de um cabelo
crespo que cruza fronteiras. Foi identificação à primeira vista. A
transposição (supostamente) bem-humorada de sua história de menina mestiça, que
sai de Luanda para viver com a família branca em Lisboa, para as aventuras de
seus cabelos crespos é tocante.
As andanças de Mila – a personagem autora – pelos bairros
de Lisboa à procura da cabeleireira perfeita, mulheres originárias de várias
partes do mundo, sobretudo da África, traz em seu bojo a necessidade de
aceitação, sua em relação a si mesma e também dos outros. Apesar do carinho com
o qual se refere aos avós e familiares paternos, que a acolheram, sua relação
com a mãe – que ficou em Angola – e avós maternos, também imigrantes em
Portugal, é repleta de amor, carinho e compaixão. Seu pertencimento oscila
entre as duas realidades e culturas, assim como as mudanças em seu cabelo. Na
narrativa, não há grandes explicações, mas impressões e sentimentos.
No final, pelo menos por enquanto, já que o mundão dá
voltas e Djaimilia é jovem, prevalece a aceitação dos cabelos como são,
mostrada a partir do fiasco de seu penteado alisado de casamento, ornamentado
com uma tiara, que anos depois deixou como enfeite em sua casa para lembrá-la
de seu antigo “drama capilar”. “A travessa exposta na vitrina devolve-me a mim
como decoração do meu cabelo. O cabelo é a pessoa. O subterfúgio da comédia, o
drama pretensamente tranquilo, são os adornos. ‘Faz de ti um museu mostrando o
que já era visível’”, escreveu.
Em nossas discussões cefelistas sobre o livro, lembramos do
momento de glória dos cabelos crespos nos anos 1960, com o Black Power e o
movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Recordações dos Jackson
Five, dos Globetrotters ou de Tony Tornado cantando BR-3, no início dos anos
70, que nos remeteram à constatação de que conquistas vão e voltam, como a
moda. Ver a ostentação de lindos penteados crespos florescer novamente, como
marca de um renovado movimento negro – principalmente aqui no Brasil de
Marielle – é reconfortante.
Nas reuniões do CFL, procuramos sempre meios de vivenciar
de alguma maneira a narrativa. Mas, nesta época de discussões – às vezes
válidas, outras nem tanto – de apropriação cultural, me causou certo
desconforto chegar e encontrar uma peruca Black Power circulando pelas cabeças.
Ao longo da noite, porém, em meio a depoimentos de lisas e crespas – nós
últimas, todas brancas, que, de verdade, na denominação cabelística, somos
apenas “onduladas” – fomos incorporando o poder dessa cabeleira e o quão
intimidante ela pode ser para os que ainda insistem em um modelo racista de
sociedade. Diante do sofrimento que essa mentalidade tem imposto a gerações de
mulheres negras – que apenas conseguimos (talvez) imaginar – só podemos desejar
vida longa, cheia e abundante para todos os cabelos crespos.
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