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Agrotóxico é veneno, não adianta maquiar o nome


Já entrevistei muito agricultor na vida e nunca vi nenhum chamar agrotóxico de defensivo agrícola. Para eles, a coisa chama veneno mesmo. Isso significa que agrotóxico já é o nome bonzinho para um produto desenvolvido para matar – insetos, plantas invasoras e outras “pragas” que podem atacar a plantação. O grande desafio no uso desses venenos é dosar a quantidade para que mate o que atrapalha sem destruir a cultura que se quer proteger. Para os fabricante, se prejudica a saúde do agricultor (ou do consumidor), é um detalhe bem ilustrado pela luta empreendida pelas empresas produtoras desses químicos contra toda legislação que tenta restringi-los.
Ao invés de procurar fazer que seus produtos sejam cada vez menos tóxicos, em geral, a indústria prefere investir em propaganda ou no desenvolvimento de espécies resistentes ao veneno, seja pelo processo da seleção natural, seja via transgênicos. Esse é o caso do defensivo Roundup, nome comercial de um herbicida fabricado pela Monsanto cujo princípio ativo é o glifosato, conhecido por contaminar alimentos, atmosfera, solo e lençol freático, podendo causar intoxicação humana mesmo quando consumido em baixas doses. É tão forte que causava a morte da soja que tentava “proteger”. A solução foi criar uma soja transgênica resistente ao produto, que pode tomar banho com ele à vontade. Já os rios, o solo, os animais que se alimentam da soja (inclusive os humanos que a consomem direta ou indiretamente) são só o “detalhe”. Não é à toa que essa indústria também luta ferozmente para que não se tenha a obrigação de avisar nas embalagens dos alimentos que eles têm origem transgênica.
São questões como essas que estão em jogo na votação, que se desenrolou ao longo desta semana na Câmara Federal, do chamado Pacote do Veneno, voltado a flexibilizar ainda mais a legislação dos agrotóxicos no país, que já é uma das mais tolerantes. O Brasil é o país onde mais se consomem esses agroquímicos no mundo e onde são permitidos produtos há tempos proibidos na Comunicada Europeia e nos Estados Unidos.
A pior parte desse pacote nem é a questão do nome da coisa, que no projeto final que está em discussão ficou como “pesticida” (a contratação do publicitário mais famoso do país pela Confederação Nacional de Agricultura deve dar conta disso sem lei mesmo), mas permitir que esses produtos possam ser liberados pelo Ministério da Agricultura sem análises de outros órgãos que são hoje reguladores, como a Anvisa e o Ibama.
Não sou especialista nem tenho a pretensão de ficar contradizendo cada argumento dessa poderosa indústria, que faz gato e sapato desde sempre em países menos desenvolvidos, onde a democracia é mais claudicante. O que ouvi de pequenos agricultores que entrevistei para reportagens e livros que falam sobre agricultura sustentável, em várias parte dos país, é que o que a indústria chama de técnicos que os visitam são, na verdade, vendedores encarregados de fazer o agricultor comprar cada vez mais, dando o mínimo de orientação, para que ele fique dependente e use o máximo possível dos produtos. Vários produtores rurais acabam optando pela agricultura orgânica depois de ficarem doentes.
Críticos que dizem que produtos orgânicos são para ricos, me emocionam só até a página 2. É claro que disputar com a indústria do veneno é difícil e ganhar escala competitiva é difícil, fazendo esses produtos chegarem mais caros aos supermercados. Mas essas diferenças de preço vêm caindo rapidamente e as opções de locais de compras, principalmente as feirinhas de orgânicos, crescem em todas as regiões do país.
Há anos, na minha casa, a maior parte verduras e legumes que comemos (e frutas quando há disponibilidade) é orgânica – ou fornecida por um produtor daqui mesmo da região metropolitana, que entrega em casa semanalmente, ou plantada na nossa horta. É um processo de reaprendizado, pois ficamos (mal)acostumados a comprar o que queremos em qualquer época do ano e os produtores orgânicos precisam respeitar as épocas de cada cultura. O resultado é um cardápio muito mais rico e variado ao longo do ano (e sem tomates que podem durar mais de um mês na geladeira – que medo!).
Outro dia, meu marido, que não é ambientalista de carteirinha como eu, comentava feliz como ninguém mais fica doente em casa. Tenho como provar que é por causa do que comemos? Não. Pretendo mudar? Só se for para aumentar a quantidade de produtos orgânicos na mesa.
(Foto: Aplicação de agrotóxico)

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