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Mostrando postagens de maio, 2023

Sobre o Marco Temporal e o tempo e tudo mais que roubamos de nós mesmos

Estava em Carajás, que é uma ferida imposta à floresta amazônica no Pará. Mais precisamente, na cidadela construída pela Vale para abrigar os funcionários qualificados que leva para coordenar e controlar a infecção causada pela retirada de minério de ferro para alimentar nossa gulosa civilização. O lugar é um tipo de Alphaville murada, não para isolar dos pobres, mas de onças e quetais. De lá, nós, jornalistas, seríamos levados pela companhia para uma comunidade caiapó, dos Xicrin do Cateté, para presenciarmos a finalização de um projeto de manejo sustentável de madeira realizado pelos indígenas. Era mais uma das inúmeras tentativas de dar uma “utilidade” para índios e suas terras, pensadas por ambientalistas e indigenistas bem-intencionados para adiar a extinção desses povos, e financiada pela grande corporação, não por generosidade ou consciência pesada, mas para pacificá-los e evitar que impedissem o carregamento da montanha em pedaços pela estrada-de-ferro que circunda a terra in

Retrofit

  Era o prédio mais bonito de São Paulo. Pelo menos no olhar do menino franzino que, aos 14 anos, foi contratado como mensageiro na Companhia Telefônica Brasileira, ou CTB. Não sabia, então, que a sede da Companhia – como chamaria a empresa mesmo após mudanças de nome ao longo do tempo – seria praticamente sua casa por toda uma vida. Conhecia cada corredor, cada sala, por onde passava entregando a correspondência entre setores, em um mundo onde o e-mail não era sequer sonhado. Tímido, mas educado e dedicado, acabou promovido ao balcão de atendimento, no suntuoso átrio do edifício. Era ali que os poucos privilegiados possuidores de telefones vinham resolver os problemas relacionados a suas linhas. Ou reclamar da falta delas, agrura paulistana que só começou a ser resolvida no final dos anos 1970. Foi daquele balcão que viu, pela primeira vez, a moça interiorana bonita e espevitada, deslumbrada com a cidade, que seria sua colega de trabalho por muito tempo, antes e depois de ter corage

Quem pode, pode

  Ler Jorge Luis Borges é uma experiência única: você não vai entender boa parte, se sentirá burra e sem referências em outras. Mas, se persistir, vai se divertir. Nos contos de Ficções, o autor mistura fatos e pessoas reais com outros imaginários, alguns totalmente fantásticos, e nos convence de estar descrevendo casos verídicos, que qualquer um que se pretenda erudito deve se interessar e ter conhecimentos prévios que o ajudem a entender. Um exemplo é o pretenso “ensaio” Exame da Obra de Herbert Quain, que teria sido um escritor que acabara de falecer. Borges analisa toda a obra do artista, incluindo até equações matemáticas e citações a Flaubert, Henry James e Schopenhauer. Terminei me sentindo uma ignorante por nunca ter lido nada de Quain! Encontrei um artigo do José Saramago onde entra na brincadeira e traz várias evidências de que Herbert Quain existiu. Em O Fim, Borges encena a morte de Martín Fierro, um gaúcho argentino, por um negro em uma briga de bar. Confesso que o que

De volta às mulheres ativistas

  Em 2019, entristecida com os retrocessos que se instalavam no país, queria fazer algum trabalho que valorizasse o engajamento feminino. Desse desejo e conversas com a Mônica Nunes, editora do Conexão Planeta, surgiu o blog Mulheres Ativistas, no qual, ao longo de três anos, publiquei o perfil de exatas 50 mulheres extraordinárias. A maior parte são amigas e parceiras de ativismo socioambiental com quem convivo e admiro há anos. Outras conheci nesse percurso e se incorporaram ao meu rol de fontes de inspiração. Parti da premissa, totalmente baseada em minhas observações, de que o ativismo feminino é especial. A maior parte das mulheres, ao aderir a uma causa, seja ela qual for, acaba por incorporar outras questões ligadas a direitos em geral, se não em sua militância, na sua própria vida. Por isso, são um motor potente para mudar o mundo. Ao longo de todo aquele tempo, minha lista de possíveis entrevistadas só cresceu. Sempre me lembrava de alguém ou recebia indicações. Ficava ang

Histórias paralelas

  Chego em São Paulo após um voo em que menos de 5% dos passageiros eram negros. Na tripulação, nenhum. Volto impactada pela visita ao National Museum of African American History and Culture, em Washington, aberto em 2016 e do qual não tinha ouvido falar até me deparar com o majestoso prédio bem pertinho da Casa Branca. A primeira coisa que me perguntei foi se este lugar existiria se não houvesse Barak Obama ou se dependesse de um governo como Trump. De todos os inúmeros museus da capital estadunidense, foi o que escolhi para conhecer e por lá passei umas boas três horas. Como tudo naquela cidade, o prédio, já grandioso por fora, é ainda maior por dentro e tem muito mais gente do que se imagina. É uma sucessão de filas para tudo. Pessoas de todas as cores, mas principalmente a população negra daquele país. Uma ala inteira para a história da escravidão e a dor no peito de sempre ao constatar como as histórias do Brasil e dos Estados Unidos são parecidas na crueldade, e de ver, mais um