O que uma mulher, que se sente inadequada com seu corpo –
e carrega esse peso real e metafórico – por toda a sua vida, tem em comum com
outra mulher, que se sente insatisfeita no papel de mãe e se apoia em uma babá
para se realizar profissionalmente, e essas duas com um porco-espinho condenado
a ser o duplo de um humano e fazer maldades em seu lugar? Aparentemente nada, a
não ser o fato de serem personagens de três livros escritos por autores
nascidos na África e revelados para a literatura na Europa.
Isabela Figueiredo, autora de A Gorda, é moçambicana, filha de portugueses, e se mudou para
Portugal após a independência da colônia; Leila Slimani, autora do best-seller Canção de Ninar, nasceu no Marrocos e
vive na França; Alain Mabanckou, autor de Memórias
de Porco-espinho, é natural da República do Congo, despontou para a
literatura na França e hoje mora nos Estados Unidos. Os três estão entre os
escritores convidados da próxima Festa Literária Internacional de Paraty
(Flip), que acontece entre os dias 25 e 29 de julho, e por isso foram tema da
última reunião do nosso Círculo Feminino de Leitura (CFL), na semana passada.
Estamos nos preparando para comemorar neste evento os 10 anos desse grupo de
mulheres leitoras.
Na bagagem, levaremos também a leitura de O Caderno Rosa de Lori Lamby, da autora homenageada Hilda Hilst, e dos também
africanos/europeus Djaimilia Pereira de Almeida (Esse Cabelo – A
tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras) e André Aciman (Me chame pelo seu nome). Não sei se essa
seleção foi proposital, mas esse mergulho na Flip nos proporcionou um contato
inesperado com escritoras e escritores africanos, que eram franca minoria na
nossa relação de mais de 130 obras lidas desde o início do CFL. O fato de
nenhum deles ainda viver na África ou ter ficado conhecido a partir de lá é um
indicativo de que o problema não deve ser falta de talentos, mas oportunidades,
naquele imenso e populoso continente. Autores brasileiros devem entender do que
estou falando.
Com temas e estilos tão diferentes,
todos esses livros são ótimos e renderam debates incríveis. Com A Gorda, romance de pitadas
autobiográficas, vimos uma mulher em permanente luta contra o abandono – da
terra natal, dos pais – que permaneceram ainda por muito anos em Moçambique
antes de também retornarem a Portugal -, da melhor amiga, do amor da sua vida.
A fome de amor se traduz em uma fome real, que define seu corpo e sua história,
de modo que já não é possível saber o que é causa e o que é consequência. Logo
no início, nos conta que perdeu 40 quilos com uma gastrectomia, mas foi uma
meia-solução: “Ainda penso como gorda. Serei sempre uma gorda. Sei que o mundo
das pessoas normais não é para mim”.
Fugir ao padrão de beleza feminino é uma
carga tão grande para Maria Luiza, a protagonista do romance, que se torna a
questão central em sua vida, eclipsando tudo o que ela apenas sugere – e que se
torna mero pano de fundo em sua trajetória -, que é ser uma intelectual
brilhante e reconhecida. Ser marginalizada na escola, preterida no baile de
formatura, rejeitada pelo namorado, que tinha vergonha dela, criticada pela
mãe, são questões que nem a conquista de um novo corpo tem a capacidade de
apagar.
Em Canção
de Ninar, mais uma vez, nos deparamos com as limitações impostas às
mulheres e nos identificamos com aquela jovem advogada que se torna mãe e vê
todo o seu potencial se perder em uma rotina nada estimulante, enquanto o
marido ascende profissionalmente. Mesmo quando decide contratar uma babá para
poder voltar ao trabalho, recebe um apoio relutante do marido, que, em nenhum
momento, mesmo quando as coisas claramente estão se tornando problemáticas,
assume um papel igualitário na responsabilidade pelos filhos.
O mote da história, com a babá sendo uma
psicopata que mata as crianças, parece gritar que essa mãe fez a opção errada,
que foi egoísta. A autora estressa uma culpa tão conhecida por mães de classe
média brasileiras: culpa por trabalhar não apenas por questões financeiras, mas
também por realização e ambições pessoais; culpa por não serem mães perfeitas e
não estarem presentes sempre que os filhos precisam – produzindo com isso uma
geração de crianças mimadas e sem limites, num processo de compensação
ilimitado; culpa, para algumas, por sublocar, por valores que sabe serem
irrisórios, seus filhos a outras mulheres que, nesse caso por necessidade de
sobrevivência, muitas vezes abrem mão de cuidar de seus próprios filhos para se
dedicar ao de outras, num círculo vicioso de frustrações. Parece que Slimani
está gritando que esta é uma questão não resolvida na nossa sociedade e que
precisamos falar mais e mais sobre isso.
Ao dar voz ao irônico porco-espinho, Mabanckou também
está jogando na cara dos humanos – que chama de primos dos macacos – o quando essa
espécie que domina o planeta é pretenciosa e age sem nenhuma razoabilidade.
Obrigado a realizar tarefas maléficas de seu senhor, movidas sempre por motivos
torpes, como ciúme, inveja, vingança, o duplo nocivo se questiona: “quem entre
o Homem e o animal é verdadeiramente uma besta? Vasta questão!”
Fotos: Livros e mimos da reunião do CFL de julho e nossas discussões, tudo fotografado pela Wal.
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