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A pintora e o revolucionário: quando ficção parece realidade que parece ficção


A melhor parte de ler livros que romanceiam acontecimentos históricos é humanizar os personagens e trazê-los para um mundo mais palpável. Por outro lado, podem nos fazer cair na armadilha de tomar ficção por realidade e não termos mais como diferenciar o que realmente aconteceu do que foi inventado. Isso está particularmente na moda quando se trata de autobiografias. O autor se protege mudando nomes, fantasiando alguns fatos, mas todo mundo sabe que trata-se da vida dele, só que não temos como separar as duas coisas. É superlegítimo, instiga, não tira o prazer da leitura, mas confunde.
Quando é um romancista partindo de uma fato que conhecemos, mas não muito, e sobre o qual há pouca informação disponível, esse efeito é mais forte ainda. Mesmo sabendo que o que está sendo contado não é exatamente verdade, nossa mente registra a informação como tal e isso mistura com o que sabemos mais ou menos e pronto: temos uma nova versão particular reinventada. Se já passamos pelo vestibular, não há o que temer.
É essa a sensação que me acompanhou durante a leitura de “Frida e Trótski – a história de uma paixão secreta”, de Gérard de Cortanze (Planeta, 2018). O romance é centrado na relação – ao que parece verídica – entre a pintora mexicana Frida Kahlo e o revolucionário comunista León Trótski, durante seu exilio na Cidade do México (entre 1937 e sua morte em 1940) - país que o aceitou após estar jurado de morte por Stálin -, por intervenção justamente de Diego Rivera, o influente pintor que era marido de Frida.
Fui acompanhada durante a leitura pela impressão que o romance entre os dois personagens foi muito inflado no livro, que sustenta que, mesmo após os poucos meses do caso em si, os laços entre eles nunca foram rompidos. Falta verossimilhança para nos fazer acreditar na importância desse relacionamento tanto para Frida quanto para Trótski, cuja relação com sua mulher Natalia Sedova continuou firme e forte depois disso. Talvez o título do livro em português colabore para o desconforto. No original, em francês, o nome é “Les Amants de Coyacán”, que suaviza a palavra paixão – termo bastante dramático – para amante, algo mais normal na vida de Frida, cuja paixão foi reservada a Rivera. Mas é só um palpite.
A parte essa questão, o romance é muito gostoso de ler, nos faz entrar no mundo de Frida e sua época. Essa mulher incrível causaria furor hoje em dia, imagina na década de 1930, em um México ultracatólico e um mundo mergulhado no nazifascismo da Segunda Guerra Mundial. Também traz certa normalidade a um personagem como Trótski, com sua vida que parece série do Netflix (como é que ainda não fizeram uma!). É como se naquele período final, quando viveu praticamente prisioneiro e aguardando o momento, que de fato ocorreu, do seu assassinato, Frida representasse para León um oásis de juventude e liberdade que o ajudava a fugir das lembranças doloridas – que incluíam a morte dos quatro filhos – e do destino inexorável que o esperava.

Sobre avida amorosa do revolucionário soviético, o artigo “Trótski teve casos amorosos com a pintora Frida Kahlo e com uma prima de Winston Churchill”, de Euler de França Belém, no jornal Opinião, é bastante saboroso: https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/trotski-teve-casos-amorosos-com-pintora-frida-kahlo-e-com-uma-prima-de-winston-churchill-97477/
(Foto: Contracapa do livro “Frida e Trótski – A história de uma paixão secreta”)

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