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Mostrando postagens de 2023

A air fryer e a ilusão capitalista

Fui apresentada à air fryer durante a pandemia. Não pessoalmente, pois me encontrava em isolamento em uma chácara, digamos, isolada, mas através das reuniões de Zoom. Era só termos uma pausa hidráulica ou nos aproximarmos da hora do almoço e alguém soltava: “chegou minha air fryer!” Dali pra frente, mesmo que estivéssemos discutindo o destino da Amazônia ou do Cerrado, de florestas, a índios, a gado, a rios, enfim, qualquer coisa mundana trivial, tudo era esquecido. As maravilhas que eram possíveis de fazer rapidamente, sem óleo, sem trabalho, apenas jogando o que quer que fosse naquela que entendi ser uma panela elétrica, tornavam-se o centro das atenções. Os rostos apáticos nas telas ganhavam vivacidade e a troca de dicas e receitas e declarações de amor ao mais importante utensílio doméstico criado desde a invenção do fogão à lenha tomavam toda a atenção. Frango à passarinho ou batata frita, legumes e arroz em minutos, forrar com papel alumínio para facilitar a limpeza, pão de que

Ativismo como uma postura de vida

  Voltamos à entrevista com Dorinha, a arquiteta pernambucana Maria das Dores Melo. Durante aproximadamente 20 anos, ela esteve à frente de organizações não-governamentais que ajudaram a colocar no mapa – literalmente – a Mata Atlântica do Nordeste e evitar que seus remanescentes interioranos desaparecessem de vez. Tanto na Sociedade Nordestina de Ecologia (SNE) como a Associação para a Mata Atlântica do Nordeste (Amane), organização criada por uma aliança de oito importantes ONGs brasileiras que atuam no bioma, ela se dedicou apaixonadamente para conseguir recursos e implementar projetos na região, até comprometer sua saúde. Para Dorinha, ativismo pode ser uma postura de viver, de se expressar, “essencial mesmo que não seja tão confortável”. Veja a entrevista completa no Conexão Planeta: https://conexaoplaneta.com.br/blog/dorinha-melo-ativismo-e-uma-postura-de-vida-essencial-mesmo-que-nao-seja-confortavel/ Foto: Arquivo pessoal.

Um encontro com a cara real do Brasil

Ando me permitindo alguns luxos. Um deles foi ter aceitado um convite para acompanhar meu marido em um evento em Gramado, no Rio Grande do Sul, na semana passada. Viagem de esposa, só pra passear mesmo. Daquelas em que se sabe muito remotamente do que se trata e que, no máximo, precisa aparecer em algum jantar. Achei que, depois de tanto tempo juntos, merecia um programa de dondoca. No primeiro dia, não me fiz de rogada. Me esbaldei de caminhar pela charmosa cidade, que não visitava há uns 20 anos, fui a alguns parques ver as paisagens da Mata Atlântica serrana, com suas araucárias, cânions e cachoeiras deslumbrantes, e percorri as principais ruas do centro com suas milhares de lojas de chocolate e roupas de frio que acho lindas, mas não teria onde usar: nem lá, já que temos nos esforçado muito para aumentar a temperatura do planeta e, enquanto estive na Serra Gaúcha, só senti mesmo um leve friozinho. Ao reencontrar meu marido no final da tarde, porém, a consciência pesou um pouco

Educação financeira e o coração mole

O menino tinha uns sete anos. Um dia chegou esbaforido da escola, bochechas vermelhas de excitação, e anunciou: - Preciso comprar as cartas de Yu - Gi - Oh !. Todo mundo tem! A mãe não fazia ideia do que se tratava, mas, solícita, perguntou onde comprava. - Em qualquer banca de jornal. Imaginou que fosse um gibi ou um álbum de figurinhas e prometeu passar para dar uma olhada. Ao chegar ao jornaleiro, porém, levou um susto. Tratava-se de algo como um jogo de baralho, com o qual os meninos travavam batalhas. O problema é que era importado e custava uma pequena fortuna para a época. Já poderia ser considerado um presente, e presentes, no combinado familiar, eram reservados para ocasiões especiais. Comunicou ao filho. Inconformado, depois de apelar para o pai, para a existência de cheque e cartão de crédito, “afinal, com eles, nem é preciso ter dinheiro”, o menino trouxe a solução: o preço do Yu-Gi-Oh! era seis vezes sua mesada. A mãe poderia emprestar o dinheiro e ele ficaria s

Neivia Justa: criadora da #ondeestãoasmulheres continua usar redes pela inclusão

  Executiva de sucesso na área de comunicação corporativa, a jornalista cearense Neivia Justa conta que foram precisos mais de 20 anos de trajetória profissional – que iniciou como apresentadora de TV em Fortaleza até a diretoria de grandes multinacionais em São Paulo -, para se dar conta de que a falta de equidade de gênero no mundo corporativo era um problema. Mas, no momento em que foi tocada pelo tema, não ficou de braços cruzados. Criou a hashtag #ondeestãoasmulheres, que logo se transformou num movimento nas redes sociais. Mas foi no Linkedin que estourou. “Se somos quase 52% da população brasileira, responsáveis por 80% das decisões de consumo no Brasil, e ocupamos 60% das vagas nas universidades, por que não somos devidamente representadas?”, questiona. No Linkedin, hoje ela já tem mais de 80 mil seguidores e incorporou outros temas, como sustentabilidade e inclusão. Trocou a vida de executiva pela de empreendedora, criando a consultoria Justa Causa, com a qual desenvolve p

Existe vida profissional após a maternidade: só tem mais emoção

  Lembrei-me desta história conversando com uma amiga grávida preocupada com seu futuro profissional. Minha narrativa não chega a ser um alento, mas posso atestar que, apesar de aventuras como esta, é possível ser mãe e profissional! Quando me tornei mãe de gêmeas, já com um filho de três anos, achei que minha vida profissional e toda mais havia se encerrado. Mas eis que, passados três meses, voltei ao trabalho e o mundo continuou a rodar, mesmo que em sistema de adaptação. Assim que as bebês completaram dez meses, me senti pronta para a primeira viagem profissional pós-revolução. A missão era uma expedição ao Vale do Ribeira para identificar necessidades das populações ribeirinhas e quilombolas que ajudassem a direcionar a ação do Instituto Socioambiental (onde eu trabalhava) naquela região. Na equipe, uma antropóloga, um advogado e eu, a jornalista que reportaria as andanças. Em Iguape, onde estava nossa base, um biólogo se juntaria ao time. Deixei meu apartamento em um clima d

Neidinha Suruí: uma onça na defesa dos índios e seus territórios

 Quem ainda não conhece Neidinha Suruí, pode ler seu perfil no Mulheres Ativistas ou assistir ao filme O Território, no Disney+, que recomendo muito. A luta desta indigenista, mãe da também ativista Txai Suruí, é uma ótima chave para entender a importância de que o Marco Temporal NÃO seja aprovado. Desde 1992, a Neidinha lidera a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, organização não-governamental de Rondônia que atua com mais de 50 etnias indígenas. Foi a primeira mulher a trabalhar na Funai com índios isolados e, por isso, se acostumou a enfrentar madeireiros ilegais, mineradores e outros invasores de terras indígenas e unidades de conservação. Mãe de cinco filhos, Neidinha passou a infância em plena floresta amazônica. Em Porto Velho, onde vive, cursou História e fez mestrado em Geografia. Com esse cacife, essa mulher miúda é uma gigante na defesa ambiental e dos direitos dos povos desde os locais mais embrenhados na mata até em eventos internacionais mundo afora. É uma onç

Passeio na Vila Flores

  As informações na internet diziam que abriria às 10h30. Chegamos às 10h40 e a porta com o número 753 do endereço está fechada. Damos a volta em torno das casinhas que compõem a Vila Flores do lado de fora, todas com plaquinhas confirmando que fazem parte desse centro cultural que há tempos quero conhecer em Porto Alegre. Tocamos até uma campainha e nada. Como típicos paulistanos, ficamos mais irritados do que decepcionados. Para não perder totalmente a viagem, saco o celular e tiro algumas fotos das fachadas antigas, enfeitadas com vasos floridos, e nos preparamos para chamar o Uber quando, como que por encanto, o 753 se abre. Dentro, um charmoso café, com mesinhas e uma cozinha à mostra, funciona como um portal para outro mundo. Uma moça sorridente, vestindo um avental, nos recebe, pergunta se é nossa primeira vez por lá e, ao respondermos que sim, diz que chamará alguém para nos acompanhar. Do outro lado do café, uma nova portinha se abre para um pátio cercado de prédios de três

Mulheres Ativistas: um olhar para as futuras gerações e para o envelhecimento feminino

  Nesta entrevista ao blog Mulheres Ativistas, no Conexão Planeta, a bióloga Lucila Egydio fala de ativismo como uma postura de vida, presente em todas as escolhas que faz. Por quase uma década, Lucila conviveu diretamente com os pantaneiros e sua cultura no Refúgio Ecológico Caiman, no Pantanal de Mato Grosso do Sul, e aprendeu a importância do ecoturismo como oportunidade de conservação do meio ambiente. Não se intimidou com o fato de ser mulher e forasteira em um ambiente bastante masculino, e conquistou seu espaço se integrando, ao máximo, aos costumes locais. A experiência adquirida como guia, na gestão do hotel e no desenvolvimento de manuais e trilhas fez com que fosse convidada, em 2000, para trabalhar no Ministério do Meio Ambiente, em um programa de desenvolvimento do ecoturismo na Amazônia. Depois disso, coordenou um projeto de desenvolvimento de ecoturismo na Mata Atlântica para a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, além de dar aulas e consultorias sobre o

Sobre o Marco Temporal e o tempo e tudo mais que roubamos de nós mesmos

Estava em Carajás, que é uma ferida imposta à floresta amazônica no Pará. Mais precisamente, na cidadela construída pela Vale para abrigar os funcionários qualificados que leva para coordenar e controlar a infecção causada pela retirada de minério de ferro para alimentar nossa gulosa civilização. O lugar é um tipo de Alphaville murada, não para isolar dos pobres, mas de onças e quetais. De lá, nós, jornalistas, seríamos levados pela companhia para uma comunidade caiapó, dos Xicrin do Cateté, para presenciarmos a finalização de um projeto de manejo sustentável de madeira realizado pelos indígenas. Era mais uma das inúmeras tentativas de dar uma “utilidade” para índios e suas terras, pensadas por ambientalistas e indigenistas bem-intencionados para adiar a extinção desses povos, e financiada pela grande corporação, não por generosidade ou consciência pesada, mas para pacificá-los e evitar que impedissem o carregamento da montanha em pedaços pela estrada-de-ferro que circunda a terra in

Retrofit

  Era o prédio mais bonito de São Paulo. Pelo menos no olhar do menino franzino que, aos 14 anos, foi contratado como mensageiro na Companhia Telefônica Brasileira, ou CTB. Não sabia, então, que a sede da Companhia – como chamaria a empresa mesmo após mudanças de nome ao longo do tempo – seria praticamente sua casa por toda uma vida. Conhecia cada corredor, cada sala, por onde passava entregando a correspondência entre setores, em um mundo onde o e-mail não era sequer sonhado. Tímido, mas educado e dedicado, acabou promovido ao balcão de atendimento, no suntuoso átrio do edifício. Era ali que os poucos privilegiados possuidores de telefones vinham resolver os problemas relacionados a suas linhas. Ou reclamar da falta delas, agrura paulistana que só começou a ser resolvida no final dos anos 1970. Foi daquele balcão que viu, pela primeira vez, a moça interiorana bonita e espevitada, deslumbrada com a cidade, que seria sua colega de trabalho por muito tempo, antes e depois de ter corage

Quem pode, pode

  Ler Jorge Luis Borges é uma experiência única: você não vai entender boa parte, se sentirá burra e sem referências em outras. Mas, se persistir, vai se divertir. Nos contos de Ficções, o autor mistura fatos e pessoas reais com outros imaginários, alguns totalmente fantásticos, e nos convence de estar descrevendo casos verídicos, que qualquer um que se pretenda erudito deve se interessar e ter conhecimentos prévios que o ajudem a entender. Um exemplo é o pretenso “ensaio” Exame da Obra de Herbert Quain, que teria sido um escritor que acabara de falecer. Borges analisa toda a obra do artista, incluindo até equações matemáticas e citações a Flaubert, Henry James e Schopenhauer. Terminei me sentindo uma ignorante por nunca ter lido nada de Quain! Encontrei um artigo do José Saramago onde entra na brincadeira e traz várias evidências de que Herbert Quain existiu. Em O Fim, Borges encena a morte de Martín Fierro, um gaúcho argentino, por um negro em uma briga de bar. Confesso que o que

De volta às mulheres ativistas

  Em 2019, entristecida com os retrocessos que se instalavam no país, queria fazer algum trabalho que valorizasse o engajamento feminino. Desse desejo e conversas com a Mônica Nunes, editora do Conexão Planeta, surgiu o blog Mulheres Ativistas, no qual, ao longo de três anos, publiquei o perfil de exatas 50 mulheres extraordinárias. A maior parte são amigas e parceiras de ativismo socioambiental com quem convivo e admiro há anos. Outras conheci nesse percurso e se incorporaram ao meu rol de fontes de inspiração. Parti da premissa, totalmente baseada em minhas observações, de que o ativismo feminino é especial. A maior parte das mulheres, ao aderir a uma causa, seja ela qual for, acaba por incorporar outras questões ligadas a direitos em geral, se não em sua militância, na sua própria vida. Por isso, são um motor potente para mudar o mundo. Ao longo de todo aquele tempo, minha lista de possíveis entrevistadas só cresceu. Sempre me lembrava de alguém ou recebia indicações. Ficava ang

Histórias paralelas

  Chego em São Paulo após um voo em que menos de 5% dos passageiros eram negros. Na tripulação, nenhum. Volto impactada pela visita ao National Museum of African American History and Culture, em Washington, aberto em 2016 e do qual não tinha ouvido falar até me deparar com o majestoso prédio bem pertinho da Casa Branca. A primeira coisa que me perguntei foi se este lugar existiria se não houvesse Barak Obama ou se dependesse de um governo como Trump. De todos os inúmeros museus da capital estadunidense, foi o que escolhi para conhecer e por lá passei umas boas três horas. Como tudo naquela cidade, o prédio, já grandioso por fora, é ainda maior por dentro e tem muito mais gente do que se imagina. É uma sucessão de filas para tudo. Pessoas de todas as cores, mas principalmente a população negra daquele país. Uma ala inteira para a história da escravidão e a dor no peito de sempre ao constatar como as histórias do Brasil e dos Estados Unidos são parecidas na crueldade, e de ver, mais um