Participo de
um grupo de leitura o qual chamamos Círculo Feminino de Leitura (CFL), que
completa em julho próximo 10 anos. Somos 11 mulheres que se reúnem mensalmente
(entre fevereiro e dezembro) para discutir um livro indicado normalmente pela
anfitriã do mês, além de dividir nossas experiências, alegrias e tristezas.
Nesse período, lemos e discutimos mais de 130 livros, dos mais diversos gêneros
e nacionalidades.
Para
comemorar nossos 10 anos, achamos que nada melhor do que realizar um sonho
antigo e nos reunir na Festa Literária de Paraty. Já reservamos uma pousada e
apenas uma de nós, que atualmente mora nos EUA, ainda não conseguiu confirmar.
Como parte de nossa preparação, resolvemos que até a viagem vamos ler livros
relacionados à Flip. Acabamos de discutir O
Caderno Rosa de Lori Lamby, da autora homenageada Hilda Hilst.
É preciso que se diga que ninguém ficou indiferente à Lory
Lamb. Umas adoraram, outras odiaram. Incumbida de puxar a discussão sobre o
livro pornô chique de Hilda Hilst fiz algumas perguntas para iniciar a conversa:
Por que o livro incomoda?
Pela linguagem obscena? Por ser uma criança? Por falar de prazer de uma forma
crua? Por associar sexo, prazer e dinheiro? Pela participação dos pais? Por não
ser uma família miserável? Por que foi escrito por uma mulher?
E outras para
ver como cada uma entendeu o livro: O que mudou da sua impressão após o final
do livro? A menina é uma pervertida? A menina não existe e é uma metáfora para
a prostituição que é o mercado (no caso o editorial)? O incômodo permaneceu
igual? Acabou? Mudou de foco? O que você
colocaria no seu caderno rosa? Sexo? Dinheiro?
Liberdade? Qual a sua história? Claro que as visões foram muito diferentes e foi curioso ver
como o olhar de cada uma se fecha no que mais a toca, no que quer ver.
Comecei
a leitura com um misto de asco e excitação, mas quando as reviravoltas se
apresentaram e passei a enxergar a história em sua perspectiva metafórica
passei a simplesmente me divertir e a me encher de admiração pela mulher
corajosa que foi Hilda Hilst. Minha pesquisa Google me levou a um texto de
2016, de Francine Ramos: O feminismo de
Hilda Hilst: ‘uma aventura obscena de tão lúcida’ (http://livroecafe.com/2016/05/03/o-feminismo-de-hilda-hilst/)
– esta última parte é
uma frase de outro livro da autora, A
Obscena Senhora D, o qual ainda não li.
Dois trechos do texto me marcaram, por me identificar com
eles: “o anonimato social
de uma mulher leva a sua carreira profissional para um lado diferente,
como se mesmo fazendo parte dos grandes nomes da literatura, Hilda Hilst, por
ser mulher, estivesse sempre à margem”. Sempre que leio um livro de história,
me pergunto quantas mulheres geniais passaram pelo mundo sem serem notadas, sem
que o seu papel tenha sido considerado. Ou que não tiveram nem a chance de
exercer sua genialidade por falta de acesso aos meios para isso.
O outro é
continuação deste e traz duas premissas que também me são caras: “Hilda Hilst
tinha um teto todo dela e dinheiro (conceito empregado por Virginia Woolf, em
Um Teto Todo Seu); e assim conseguiu ser livre para escrever sobre o que
quisesse, porém, o mundo à sua volta não era livre e recebeu a autora como
uma figura provocadora. E ela adorava isso! Como prova, além de tudo, temos a
sua obra erótica que até hoje causa espanto até nos mais libertários.”
Entre premissas
de ter dinheiro e liberdade, a primeira faz toda a diferença e tem a ver com o
que disse acima, sobre as mulheres raramente terem acesso aos meios de exercer
os seus talentos. Sem dinheiro (ou ganhando pouco, ou tendo seus trabalhos
menosprezados), estão sempre inseguras de seu valor ou mesmo impedidas de se
mostrar. Esse não era o caso de Hilst nem de Woolf. Hilda podia escrever sem se
preocupar com a sobrevivência, sem medo de chocar, porque não dependia de
ninguém. O mais incrível, porém, é que soube exercer essa liberdade, sem medo
do que pudessem pensar. Mas nem tento: ela mesma diz que escreveu seus livros
obscenos para tentar ser lida, tentar ter um reconhecimento popular que
considerava negado por ser mulher.
Há um crônica
de Dráuzio Varela, daquelas que circulam periodicamente nas redes sociais (mas
foi publicada na Folha – eu li no dia que saiu), onde mostra a misoginia na
sociedade e conclui que, se outra encanação houver, quer novamente nascer
homem, para não ter que passar o que uma mulher passa. Em um dado momento do
texto, ele exemplifica sua teoria com um homem de meia idade e sobrepeso que,
ao se olhar no espelho, bate na pança e sorri feliz consigo mesmo. Para o autor
(com quem concordo 100%), dificilmente uma mulher nas mesmas condições teria a
mesma segurança com sua aparência.
Hilda Hilst,
tinha, em relação ao seu trabalho, essa segurança que, em homens ‘alfa’ é
considerada normal, mas que em uma mulher é vista como prepotência e falta de
noção: “Depois de ter escrito tudo que eu escrevi, e eu sei que escrevi
lindamente, que modifiquei a prosa narrativa, eu tenho plena consciência disso,
não aconteceu nada. Fiz uma revolução na língua portuguesa, enfoquei os
problemas mais importantes do homem, procurei fazer o possível para o outro se
conhecer. Fiz um lindo trabalho. E não aconteceu absolutamente nada, não fui
lida.” (p. 257, Fortuna Crítica,
Pornô Chic, Editora Globo).
Uma
declaração dessas me deixa mais sem fôlego do que o diário de uma menininha
inocente tirando prazer de sua relação com pedófilos agenciados pelos pais.
Assim como sua coragem em mostrar que o que acha verdadeiramente pornográfico é
o mercado editorial, em busca do sensacionalismo barato. Toda minha admiração
para Hilda.
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