O primeiro lugar em que morei foi um apartamento na Bela
Vista, na rua Martinho Prado, no prédio onde funcionou por muitos anos o
Ferro’s Bar, primeiro ponto de encontro de mulheres gays na cidade. Claro que
eu não sabia disso, já que me mudei de lá aos cinco anos. Segundo o jornalista
Mouzar Benedito, no
Blog da Boitempo[M1] ,
até 1964, ano em que nasci e em que houve o golpe militar, o bar era
frequentado por militantes comunistas, mas com as perseguições que se seguiram
passou a ser ocupado pelas lésbicas. A repressão ao local continuou, como se
pode imaginar, mas era de outra natureza[M2] e
não é essa história que eu queria contar.
Falando do que me lembro sobre esse meu primeiro endereço,
meu parquinho era a praça Roosevelt e, este é o ponto, andava de tico-tico
(para quem sabe o que é isso) no Minhocão, enquanto estava sendo construído.
Acho que meu pai me levava lá nos fins de semana, quando não havia obras (nem
sei se aconteceu mais de uma vez), mas é uma imagem que nunca esqueci.
Já não morava no Centro quando o elevado foi inaugurado,
em 1971, mas é um local que, de um jeito ou de outro, fez parte da minha vida.
Seja por passar muito perto do apartamento dos meus tios, na rua Barão de
Campinas, em Santa Cecília, quando eu e minhas primas, mesmo novinhas,
circulávamos pelas ruas muito tranquilamente e íamos até a Igreja de Santa
Cecília ver a imagem da santa e confabular se era verdade que os cabelos dela
continuavam crescendo, seja bem mais tarde quando se tornou meu caminho diário.
Foram incontáveis horas parada em seus congestionamentos, pelos menos dois
espelhos de carro levados por motoqueiros e, em raras oportunidades, algumas
tomadas de curva, numa época em que regras de trânsito e noção de perigo ainda
não tinham sido inventadas por aqui.
Foi por esses tempos que comecei a acompanhar, como
repórter de cidades, as discussões sobre a degradação no entorno atual elevado
Presidente João Goulart (cuja alcunha ainda era Costa e Silva) e a
possibilidade de impor limites ao tráfego de automóveis e, quem sabe, um dia, até
implodir a coisa. Ainda em fins do século passado, eram discussões que – apesar
de me deixarem animada – pareciam meio surreais, de tão impossíveis.
Os anos passaram e os limites ao tráfego vêm se
efetivando lentamente e hoje até parece natural pensar em um Minhocão totalmente
sem carros. Com a criação do Parque Municipal do Minhocão, no início deste ano,
há uma previsão (sem data determinada) de desativação gradativa do elevado para
o trânsito. Atualmente, fecha nos finais de semana e de segunda a sexta-feira
entre 20 e 7 horas da manhã.
Gosto da ideia do parque. Até acredito que a cidade
ficaria mais bonita sem o elevado – e que talvez essa seja a alternativa
defendida pelos moradores do entorno. Mas acho que as cidades têm uma história
que precisa ser de alguma forma preservada. Além disso, faltam espaços públicos
em São Paulo. Ter os 2,8 km de pistas abertas a pedestres e ciclistas me parece
razão suficiente para manter o viaduto.
Costumo passear por lá algumas vezes por ano. É um
trajeto mais do que tudo afetivo, mas também uma oportunidade de vivenciar a
metrópole por um ângulo diferente e também olhar os belos murais das empenas
cegas dos prédios – tanto os grafites quanto as incríveis paredes verdes. E as
pessoas fotografando, atividade que mais vejo as pessoas fazendo por lá, o que
mostra que a obra mais bizarra da cidade também pode ser fotogênica.
[M1]https://blogdaboitempo.com.br/2013/05/08/de-bar-em-bar-xxiv-ferros-bar/
[M2]https://vangeleonel.blogspot.com/2008/09/revolta-do-ferros-bar.html
Foto: Minhocão em um sábado de sol.
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