Era o prédio mais bonito de São Paulo. Pelo menos no olhar
do menino franzino que, aos 14 anos, foi contratado como mensageiro na
Companhia Telefônica Brasileira, ou CTB. Não sabia, então, que a sede da
Companhia – como chamaria a empresa mesmo após mudanças de nome ao longo do
tempo – seria praticamente sua casa por toda uma vida. Conhecia cada corredor,
cada sala, por onde passava entregando a correspondência entre setores, em um
mundo onde o e-mail não era sequer sonhado. Tímido, mas educado e dedicado,
acabou promovido ao balcão de atendimento, no suntuoso átrio do edifício. Era
ali que os poucos privilegiados possuidores de telefones vinham resolver os
problemas relacionados a suas linhas. Ou reclamar da falta delas, agrura
paulistana que só começou a ser resolvida no final dos anos 1970.
Foi daquele balcão que viu, pela primeira vez, a moça interiorana bonita e espevitada, deslumbrada com a cidade, que seria sua colega de trabalho por muito tempo, antes e depois de ter coragem de se declarar. Para ela, a Companhia significou a prova de que a capital era mesmo cheia de oportunidades. Assim que chegou “à terra da garoa, em um deslumbrante dia de sol”, soube que estavam contratando telefonistas e correu para se inscrever. Ao passar pelo exame admissional, com uma gripe forte de recém-chegada, o médico perguntou sobre sua formação e, ao saber que “fazia o Normal”, disse que era muito qualificada para ser telefonista. Pediu que fosse para casa e, quando passasse a febre, voltasse que seria encaminhada para um trabalho mais bem remunerado e menos sacrificado. As heroicas telefonistas trabalhavam em esquemas de plantão que incluíam dormir no serviço, o que inviabilizaria que terminasse o magistério no turno da noite.
De uma forma resumida, na parte que me toca desta história,
eu possivelmente não existiria se esse edifício não tivesse sido construído.
Foi na CTB que meus pais se conheceram e se apaixonaram. Era para estar perto da
rua Sete de Abril, onde trabalhavam, que, ao se casarem, foram morar na rua
Martinho Prado, em frente à Praça Roosevelt e ao lado de onde estava sendo
construído o elevado que seria conhecido como Minhocão. Dali, podiam almoçar em
casa e estar rapidamente com o casal de filhos que aumentou a família em pouco
mais de dois anos. Durante meus primeiros anos, esses cartões-postais de São
Paulo, que incluíam subir e descer a escada rolante da Galeria Metrópole,
programa de todos os fins de semana, eram o mundo que conhecia. O edifício da
Sete de Abril era tão parte da família quando os muitos amigos dos meus pais
com os quais convivíamos, todos colegas na Companhia.
Desdobramento comum para a época, depois de onze anos
trabalhando no mesmo lugar e com o marido que de colega passou a chefe, minha
mãe deixou o emprego e nos mudamos para um bairro mais amigável para crianças.
Meu pai, estudando à noite, concluiu dois cursos superiores, o que viabilizou
que tivesse uma longa e bem-sucedida carreira na firma, que de Companhia
Telefônica, passou a Telesp, voltou a ser Telefônica e, agora, privatizada, não
sei mais o que é. Em algum momento, com a empresa crescendo ao ritmo de São
Paulo, meu pai deixou o edifício da Sete de Abril e trabalhou em diversos
endereços até se aposentar, depois de 45 anos, como o funcionário mais longevo na
organização até então.
E eis que outro dia vejo no Instagram que o edifício da Telefônica, aquele que foi um dos mais imponentes da cidade e está abandonado há anos, será retrofitado. E que, antes da obra começar, estava sendo realizada uma exposição de arte no local. Tive um ataque de comichão e ansiedade. Faltavam poucos dias, precisava levar meu pai até lá. Combinei de me encontrar com ele na porta, mas, ao chegar, quase me arrependi ao me deparar com um prédio totalmente deteriorado. Não havia placas indicando que algo acontecia ali, apenas portas fechadas e paredes pichadas. Mas faltava ainda meia hora para abrir e resolvi tomar um café em uma lanchonete ao lado e ver o que acontecia. Aos 88 anos e com seus passos vagarosos, localizei meu pai um tanto atordoado na multidão do centro e fui resgatá-lo. Ele já havia passado em frente ao edifício e estava tão decepcionado quando eu. Aguardamos ainda alguns minutos e, quando nos aproximamos, havia várias pessoas esperando a abertura da exposição.
Estávamos entre os primeiros a entrar no grande vestíbulo
que misturava um ar de abandono com início de obras, ocupado por poderosas
instalações de arte que pareciam gritar que aquele é um espaço de valor, do
qual o capital e a falta de memória da metrópole tentaram se livrar, mas não
conseguiram. Os olhos mareados de meu pai, porém, mal enxergavam as obras de
arte. Suas pupilas refletiam os tempos passados: o grande balcão, os
elevadores, o banco onde os clientes esperam para ser atendidos, o mezanino, de
onde desciam por um elevador os documentos solicitados. O título da mostra,
Irrealidades Visíveis, era o mais próprio possível.
Em meio a restos abandonados de móveis e tecnologias
antigas, alguns deles utilizados nas instalações artísticas, meu pai me
descreveu como era o prédio, como funcionava a empresa, onde ficavam os
escritórios, as telefonistas e seus dormitórios, as quadras de boliche, segundo
ele coisa dos “ingleses” da Companhia. Lamentou que minha mãe, hoje com
demência senil, não pudesse estar ali.
Ficamos sabendo que o prédio será reformado e transformado
em escritórios e apartamentos, que já estão à venda. Permanecemos andando pela
atual ruína por quase uma hora e saímos felizes de saber que voltará à vida, e,
talvez, ajude a recuperar o que podemos chamar do coração de São Paulo. Este, constatamos,
anda um tanto sujo e com um certo ar de desleixo do poder público. Mas ainda é
vibrante e cheio de uma diversidade que faz lembrar a cidade de promessas de
quase um século atrás.
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