Lembrei-me desta história conversando com uma amiga grávida preocupada com seu futuro profissional. Minha narrativa não chega a ser um alento, mas posso atestar que, apesar de aventuras como esta, é possível ser mãe e profissional!
Quando me tornei mãe de gêmeas, já com um filho de três
anos, achei que minha vida profissional e toda mais havia se encerrado. Mas eis
que, passados três meses, voltei ao trabalho e o mundo continuou a rodar, mesmo
que em sistema de adaptação. Assim que as bebês completaram dez meses, me senti
pronta para a primeira viagem profissional pós-revolução.
A missão era uma expedição ao Vale do Ribeira para
identificar necessidades das populações ribeirinhas e quilombolas que ajudassem
a direcionar a ação do Instituto Socioambiental (onde eu trabalhava) naquela
região. Na equipe, uma antropóloga, um advogado e eu, a jornalista que
reportaria as andanças. Em Iguape, onde estava nossa base, um biólogo se
juntaria ao time.
Deixei meu apartamento em um clima de paz celestial, com
bagagem para cinco dias e uma secreta euforia pelas noites que passaria na
pousada sem nada para interromper meu sono. Tínhamos avançado menos de duzentos
quilômetros na Regis Bittencourt, no entanto, quando meu telefone tocou.
Maridão avisava para eu não me preocupar, ficar tranquila, mas que uma das
gêmeas estava com um pouco de febre e que ele sairia mais cedo do trabalho para
acompanhar.
Não me preocupei.
Horas mais tarde, enquanto me enternecia com um pinguim
achado na praia, que se recuperava no cercadinho da sede do Ibama em Iguape, e
me decidia se ignoraria o cateto que morava na recepção e ia até a sala do
coordenador para entrevistá-lo, chegou mais uma ligação de casa. “Só para você
acompanhar, a bebê está com um febrão e muita tosse. Parece que também estou um
pouco resfriado. Tudo bem por aí?” Ainda estava.
À noite, após recusar sair com o pessoal para ter minha tranquila
noite de sono, dei uma ligadinha pra casa, para ser informada que o pediatra
pediu para ver a bebê no dia seguinte e que meu marido se sentia febril, “mas
está tudo sob controle, os outros dois estão bem, aproveite a viagem”.
Saímos de barco na madrugada do dia seguinte para nos
embrenharmos nas comunidades do Lagamar, onde não chegavam notícias, políticas
públicas e tampouco sinal de celular. Em meio à exuberância de mangues,
florestas e restingas, e histórias de pescadores, marisqueiros e extrativistas,
me esqueci de tudo mais. Só lembrei que era uma mãe-de-família durante o jantar
e após algumas taças de vinho, na hora em que finalmente ouvi o telefone e
gelei com a quantidade de mensagens.
Meu marido, então já desprovido de sutilezas, descrevia
uma situação de caos, na qual ele, “com muita febre”, teve que levar a bebê
para tirar chapa do pulmão, “pois parece pneumonia”, e a “babá também está com
tosse e febre”. Vencida pela realidade, decidi deixar a equipe seguir viagem
sem mim e voltar para casa no primeiro ônibus, que saía às 5 horas da manhã.
O caco humano, cansado e culpado que acordou com o
celular descarregado e atrasado pela noite curta e mal dormida, só se lembrou
que não havia feito xixi quando o ônibus deixava a rodoviária, e foi se
contorcendo até a primeira parada em Miracatu, uma hora depois, com o dia
amanhecendo. Saí voando assim que a porta se abriu e corri para o banheiro,
para descobrir que o xixi custava 50 centavos. Tentei negociar com uma leoa de
chácara que cuidava daquela roleta como se fosse a entrada do paraíso, o que
para mim efetivamente era.
Sem sucesso, tirei da carteira o único dinheiro que
tinha, uma nota novinha de 50 reais. Ela não se comoveu. Pediu que eu esperasse
enquanto ia trocar, o que pareceu, naquela situação de desespero, demorar
algumas horas. Apenas depois de contar todas as moedas e notas de 1 real, as
quais depositou uma a uma na minha mão, finalmente liberou minha entrada.
Confesso que o alivio de sentir o corpo voltar à situação
de controle me tirou um pouco da pressa e da noção de realidade, tanto que
cheguei a cogitar tomar um café. Uma olhada rápida para o estacionamento,
porém, fez meu coração sincopar. Ainda sem entender a situação, me vi correndo
de um lado para o outro, sem acreditar que o acontecido de verdade aconteceu. O
ônibus foi embora sem mim e, pior, com todas as minhas anotações dentro da
mochila.
Desse momento em diante, minha mente entrou no modo “o
que gostaria de fazer: assassinar o motorista e a leoa de chácara” versus “o
que preciso fazer”, que finalmente se impôs. Cheguei ao guichê indignada, aos
berros, que se transformaram em lágrimas e desistência da vida assim que o
vendedor me disse que o próximo ônibus só sairia ao meio-dia.
Nesse momento, conheci a verdadeira compaixão. O rapaz
ficou tão condoído com minha história de supermãe que precisa salvar a família,
que se ofereceu para alcançar o ônibus de moto.
Sem pensar ou puxar da memória “por que mesmo eu não ando
mais de moto?” (quase fui comida por um pitbull, que pôs a cara pra fora de um
carro e, felizmente, só conseguiu levar parte do meu cabelo), aceitei o
oferecimento e me vi na garupa do mocinho, sem capacete, fazendo motocross a
mil por hora por uma estrada vicinal que não fazia ideia para onde levava.
Depois de uns 15 minutos e uma manobra radical para a direita,
finalmente chegamos na BR-116 no exato instante em que o ônibus passava, ou
seja, não conseguimos pará-lo por uns cinco segundos.
Resignada, voltei com ele para a rodoviária de Miracatu,
de onde ligou para a de São Paulo e conseguiu a promessa de que guardariam minha
mochila até eu chegar, o que só aconteceu por volta das quatro da tarde.
Em casa, uma hora de táxi depois, fui recebida pela babá,
apenas levemente gripada, e pelas crianças felizes, saudáveis e bem cuidadas: o
exame da bebê não mostrou pneumonia. Meu marido, que acordou sem febre, saiu
cedo normalmente para o escritório e só chegou, como sempre, por volta das 8 da
noite.
(Foto: eu, em outras andanças de trabalho, para mostrar que tudo tem solução)
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