Estava em Carajás, que é uma ferida imposta à floresta amazônica no Pará. Mais precisamente, na cidadela construída pela Vale para abrigar os funcionários qualificados que leva para coordenar e controlar a infecção causada pela retirada de minério de ferro para alimentar nossa gulosa civilização. O lugar é um tipo de Alphaville murada, não para isolar dos pobres, mas de onças e quetais.
De lá, nós, jornalistas, seríamos levados pela companhia
para uma comunidade caiapó, dos Xicrin do Cateté, para presenciarmos a
finalização de um projeto de manejo sustentável de madeira realizado pelos indígenas.
Era mais uma das inúmeras tentativas de dar uma “utilidade” para índios e suas
terras, pensadas por ambientalistas e indigenistas bem-intencionados para adiar
a extinção desses povos, e financiada pela grande corporação, não por generosidade
ou consciência pesada, mas para pacificá-los e evitar que impedissem o carregamento
da montanha em pedaços pela estrada-de-ferro que circunda a terra indígena – ou
invade parte do que deveria estar dentro dela. Caiapós são guerreiros e a vida
do capital não é fácil perto deles.
Nos levantamos cedo para a viagem e eu estava animada, pois,
mesmo com anos de trabalho relacionado a povos indígenas, nunca havia estado em
uma aldeia, mas também com medo. Quando ouvi que iríamos de “caravan”, achei
que era de carro, mas era um bimotor. Andava sensível naqueles tempos. Com
crianças pequenas em casa, tinha paúra de morrer, imagina perdida no meio da
selva! Foram uns 40 minutos de pavor e maravilhamento voando debaixo de chuva
sobre aquele tapete verde sem fim. Até que, junto com um sol esplendoroso, surgiu
uma clareira na paisagem – a pista de pouso -, um trechinho de terra à mostra
cheio de crianças correndo e acenando para o avião. Gelei em pleno calor
equatorial ao nos aproximarmos e imaginar um strike de crianças, que, claro,
não aconteceu.
Na aldeia, ali pertinho, a expectativa de um grande evento agitava os moradores. Entre os muitos visitantes, até ministro de Estado era esperado. No grande pátio, cercado pelas construções típicas daquele povo, crianças de todas as idades circulavam, as menorzinhas totalmente nuas, em um ambiente de total liberdade. Corriam, subiam em árvores, os bebês passavam de colo em colo. Pareciam não ser cuidadas por ninguém, mas percebi que, na verdade, eram cuidadas por todos.
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Foto: Festa por ocasião de saída da primeira safra de
madeira da Terra Indígena Xikrin do Cateté. Pedro Martinelli-2000, ISA, https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kayap%C3%B3_Xikrin |
Um grupo de meninas, quase adolescentes, me cercou para mostrar as pulseiras de sementes e miçangas que haviam feito. Queriam trocar pelo relógio de ouro que carregava no pulso. Não entendiam minha recusa, pois eram muitas pulseiras para um só relógio. Expliquei a elas (com alguma verdade), que se tratava de um presente de meu marido, por isso não seria possível me desfazer dele. Ganhei pulseiras mesmo assim, mas fiquei com uma sensação de perda que ainda não conseguia explicar.
Durante a solenidade com as autoridades, a maior parte dos
moradores parou para assistir. O cacique - um senhor imponente e com cara de
bravo, sentado no chão no centro da roda - fazia as honras da casa. Enquanto
falava, várias crianças acercavam-se dele, algumas sentavam-se entre suas
pernas. Quando uma delas queria lhe dizer alguma coisa, ele interrompia sua
fala para ouvi-la pacientemente, e depois continuava a conversa com os
forasteiros.
Comecei a me sentir mal. Demorei para perceber a causa. Tive
uma epifania. Me transportei para meu apartamento pequeno onde meus filhos
deveriam estar confinados aos cuidados da babá ou em alguma atividade
monitorada por adultos pagos para mantê-los sob controle. Um nó me subiu pelo
estômago e precisei sair correndo dali antes que o soluço alto, que não tinha
como evitar, chamasse a atenção. Sozinha, atrás de grandes árvores às margens
da aldeia, chorei por vários minutos invadida por um sentimento de pena dos
meus filhos, e culpa por proporcionar uma infância tão pobre pra eles. Os via
como pequenos prisioneiros em um mundo tão grande e cheio de aventuras e
belezas inacessíveis para suas vidas limitadas a um sistema pré-determinado e
sem saída.
Lembrei desse momento hoje de manhã ao ver as manchetes sobre a aprovação na Câmara dos Deputados do Marco Temporal. A imprensa vê o fato como um revés para a agenda ambiental do governo Lula. Ruralistas, garimpeiros e corporações ávidas por mais e mais terras e rios e florestas e montanhas para comer devem estar comemorando. A maior parte da população não está nem aí, não entende do que se trata nem está interessada em saber. Eu voltei para aquela aldeia indígena que me mostrou o quando de nossa humanidade estava perdida. E tive pena de meus possíveis futuros netos.
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