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Passeio na Vila Flores

 

As informações na internet diziam que abriria às 10h30. Chegamos às 10h40 e a porta com o número 753 do endereço está fechada. Damos a volta em torno das casinhas que compõem a Vila Flores do lado de fora, todas com plaquinhas confirmando que fazem parte desse centro cultural que há tempos quero conhecer em Porto Alegre. Tocamos até uma campainha e nada. Como típicos paulistanos, ficamos mais irritados do que decepcionados. Para não perder totalmente a viagem, saco o celular e tiro algumas fotos das fachadas antigas, enfeitadas com vasos floridos, e nos preparamos para chamar o Uber quando, como que por encanto, o 753 se abre. Dentro, um charmoso café, com mesinhas e uma cozinha à mostra, funciona como um portal para outro mundo. Uma moça sorridente, vestindo um avental, nos recebe, pergunta se é nossa primeira vez por lá e, ao respondermos que sim, diz que chamará alguém para nos acompanhar.

Do outro lado do café, uma nova portinha se abre para um pátio cercado de prédios de três andares com apartamentos com varanda na frente. A combinação de construções antigas com trepadeiras e flores, pinturas, esculturas e bancos de praça faz pensar que estamos em uma cidadezinha europeia. A manhã ensolarada deixa tudo ainda mais colorido, e relaxamos de vez quando aparece Pâmela para nos guiar. Ela conta que o espaço é uma antiga vila de operários, formada por três edifícios projetados nos anos 1920 pelo engenheiro-arquiteto alemão Joseph Franz Seraph Lutzenberger, avô no nosso ambientalista primeiro José Lutzenberger. Penso que ter um avô imigrante que projetou varandas para operários no início do século passado deve ter sido uma inspiração para o Lutz que nos puxou para a luta contra a poluição e degradação ambiental em nosso país.


Pâmela explica, também, que o local é um centro de arte e cultura, gerido por organizações do terceiro setor, cooperativas, sociedade civil e empreendimentos sociais, e mantido pelo aluguel que organizações e artistas pagam para instalar seus ateliês nos antigos apartamentos. Ela mesma atua em um projeto social que une arte, educação e sustentabilidade, por meio de reaproveitamento de tecidos e produção de roupas e acessórios, que são vendidos no local. Nos leva para conhecer os galpões, onde são realizadas oficinas e exposições. Nas paredes, o resultado de uma dessas oficinas na qual mulheres expressam a indignação pela onda misógina que toma conta do Brasil. Frases de políticos machistas notórios me deixam arrasada ao constatar que são todos paulistas: “Os governos agora precisam ter maridos, viu, porque daí não vai quebrar” (Michel Temer); “Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio mulher” (vocêsabequem); “Se está com desejo sexual, estupra, mas não mata” (Paulo Maluf); “São fáceis porque são pobres” (Arthur do Val). Sei que o mal é nacional, mas é duro de ver tipos como esses brotarem como cana, café e laranja no meu estado.

Shows, festivais e até uma feira de produtos orgânicos fazem parte da programação do lugar. Uma creche parental é mantida para o cuidado compartilhado das crianças. Em abril último, o local foi um dos escolhidos para receber o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por suas ações para preservação e promoção do patrimônio social e seu impacto para a sustentabilidade econômica. Cheios de compromissos familiares que compõem nossas visitas a Porto Alegre, nem temos tempo de tomar o café e esperar pelos pãezinhos que estão sendo assados no momento que saímos. Um dos ótimos motivos para voltar.





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