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Sobre mérito e vitimização


Assisti ontem ao TEDx da incrível cientista e professora Joana Felix no qual conta sua trajetória de menina negra e pobre de Franca, interior de São Paulo, até o pós-doutorado em Harvard e o trabalho fantástico que conduz na Escola Técnica Estadual (ETEC) Professor Carmelino Corrêa Júnior, na sua cidade natal. Impossível não se emocionar com as experiências que ela conta sobre os resultados das pesquisas que realiza com seus alunos (também pobres e ainda no segundo grau) sempre voltadas para resolver algum problema concreto. Apesar dos 82 prêmios que ganhou – incluindo o Kurt Politizer de Tecnologia de “Pesquisadora do Ano”, em 2914 – Felix ressalta que seus maiores prêmios são os agradecimentos de pais que viram seus filhos trocarem a prostituição e o tráfico pela ciência.
Claramente superdotada, a cientista alfabetizou-se sozinha aos quatro anos e, esta foi sua grande sorte, a façanha foi descoberta pela diretora de escola na casa de quem sua mãe trabalhava como empregada doméstica. Impressionada, pediu à mãe da menina se poderia levá-la à escola. Com uma trajetória impressionante, Joana iniciou sua vida acadêmica na Unicamp aos 14 anos e comove ao contar como venceu todas as dificuldades impostas por sua condição social e o preconceito racial que sofreu durante todo o percurso.
Uma coisa, porém, me incomodou muito no seu depoimento. Várias vezes Felix ressalta que nunca se vitimizou e que é contra todo tipo de vitimização. Essa é uma narrativa utilizada hoje para justificar que não se tenham políticas especiais para populações marginalizadas ou para menosprezar movimentos feministas. Não combina com seu discurso de inclusão de jovens marginalizados em seus grupos de pesquisa e sua exortação para que se proporcione caminhos para que esses jovens tenham contato com a ciência. Lutar por oportunidades para quem sempre foi alijado delas está longe de ser vitimização.
Voltando à pesquisa da Oxfam Brasil sobre desigualdades que mencionei na semana passada, continuo achando precisamos discutir mais as percepções sobre mérito na população. De acordo com a pesquisa, 58% dos brasieliros duvidam, mas 41% concordam que “uma pessoa de família pobre que trabalha muito tem a mesma chance de ter uma vida bem-sucedida que uma pessoa nascida rica e que também trabalha muito”.
Há um empate técnico (51% contra e 49% a favor) sobre a afirmação de que “uma criança de família pobre que consegue estudar tem a mesma chance de ter uma vida bem-sucedida que uma criança nascida em uma família rica”. Consigo aceitar a hipocrisia sincera de privilegiados com que convivo que dizem acreditar em meritocracia (cada um defende o seu), mas é difícil entender esse pensamento no restante da população. Eles acham mesmo que os ricos o são porque trabalharam duro? Acham que os filhos dos ricos são todos superdotados como Joana Felix e que os seus não o são por isso não enriqueceram? Acreditam mesmo que frequentar uma escola mequetrefe, com falta de professores, de equipamentos (alguns básicos, como banheiros ou merenda decentes) dá as mesmas chances aos seus filhos do que as de crianças que frequentam ótimas escolas, curso de inglês, clubes, viagens etc.?
Apresentação da Cia Sansacroma, do bairro Capão Redondo/SP, sobre desigualdades, durante apresentação da pesquisa da Rede Nossa São Paulo, no Sesc Pompeia.
Essa percepção é ainda mais contraditória diante, por exemplo, de outros dados da pesquisa, indicando que 64% acreditam que mulheres ganham menos por serem mulheres, 52% que negros ganham menos por serem negros, 72% que a cor da pele influencia na decisão de contratação e 81% que ela influencia na abordagem policial, 71% que a justiça é mais dura com os negros e 81% que pobres negros sofrem mais do que pobres brancos.
Infelizmente, a mim parece que apenas rezar ou se esforçar individualmente não tirará o Brasil dessa situação de extrema desigualdade. Sem políticas públicas consistentes, preocupadas com o bem comum e não com interesses privados bem delimitados, continuaremos nesse impasse eterno. Isso não tem nada a ver com vitimização.
Cultura desigual
Para exemplificar como a desigualdade se manifesta em todos os setores, uma outra pesquisa, lançada na semana passada pela Rede Nossa São Paulo, com realização do Ibope Inteligência, trouxe um panorama do acesso à cultura na cidade de São Paulo (isso mesmo, cultura, essa entidade que vem sendo demonizada, mal tratada e mal falada pelos poderosos da vez, sobretudo no governo federal, mas com ramificações consistentes também nas esferas locais).
Dos 96 distritos da metrópole, 60 não possuem museus, 54 não têm cinemas, 53 não contam com centros culturais ou espaços de cultura, 52 não têm salas de show ou concertos, 42 não possuem teatros, 37 não têm acesso a livros para adultos e 36 a livros infanto-juvenis, e 23 não possuem equipamentos culturais públicos. Cinco distritos (Cidade Ademar, Marsilac, Ponte Rasa, Vila Matilde e Vila Medeiros) não possuem nenhum desses equipamentos. Desnecessário lembrar, mesmo para quem não conhece São Paulo, que os distritos mais carentes de cultura são os mais populosos e afastados do centro expandido da cidade.
Um dos resultados concretos dessa distribuição desigual na oferta de cultura pode ser visto na frequência a atividades culturais nos últimos doze meses por faixas extremas de renda familiar mensal. Enquanto entre as pessoas das famílias com mais de cinco salários mínimos mensais 77% frequentaram cinema, nas de famílias com até dois salários mínimos foram 38%. Nas demais atividades, a discrepância se mantêm com: festas populares/de rua (41% entre os mais ricos, contra 29% entre os mais pobres), shows (47% contra 19%), centros culturas (41% contra 16%), bibliotecas (26% contra 14%), feiras de artesanato (48% contra 17%), teatro (30% contra 10%), museus (29% contra 10%). Quase três em cada 10 paulistanos (28% ou 2,7 milhões de pessoas) não frequentaram nenhuma atividade cultural nos últimos doze meses.

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