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Mulheres esquecidas da literatura brasileira

Constância Lima Duarte, Isabella Martino (mediadora) e Luiz Ruffato no debate da Biblioteca Mário de Andrade.


Você pode nunca ter ouvido falar, dificilmente aprendeu na escola, mas o Brasil contou com muitas escritoras, algumas de bastante sucesso em suas épocas, antes de Rachel de Queiroz e Cecília Meireles despontarem nos anos 1930. O resgate dessa história ocultada, como muitas outras neste país, é o objetivo da exposição Pioneiras – Autoras Mulheres no Acervo de Raridades da Biblioteca Mário de Andrade (até 26 de maio, das 8 às 20 horas, na própria biblioteca), que reúne 50 títulos escritos por autoras entre 1754 e 1933. “A exposição traz uma ótima amostra, mas foram centenas de escritoras que fizeram sucesso, obtiveram repercussão e desapareceram na amnésia que apagou a história da mulher, fruto do corporativismo masculino”, disse a pesquisadora Constância Lima Duarte, no debate que inaugurou a exposição na semana passada (2/4).
Uma dessas escritoras é a norteriograndense Nísia Floresta, que nasceu em 1810 e, segundo Duarte, foi a primeira brasileira a escrever sobre os direitos das mulheres. Aos 21 anos, publicou o livro Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, no qual faz um apanhado do que estava sendo discutido sobre o tema na Europa e argumenta a favor da capacidade das mulheres de aprender a ler. Repetindo, para a turba que ainda vocifera que feminismo é “mimimi”, naquela época não existiam escolas para meninas no Brasil. A primeira lei autorizando a abertura de escola primária para meninas é de 1827.
No final dos anos 1930, Nísia se muda para o Rio de Janeiro e abre uma escola para meninas, que funcionou por 16 anos. Entre seus mais de 15 livros, está, ainda, Opúsculo Humanitário, ensaio sobre a educação feminina (única de suas obras na Biblioteca Mário de Andrade e que está na exposição), que reúne artigos seus publicados nos principais jornais da época. Além das mulheres, a escritora foi também defendia a abolição dos escravos e os índios. Em 1949, lançou o livro Lágrima de um Caeté, poema épico com 720 versos denunciando a dizimação das tribos e dos valores indígenas. Neste mesmo ano, muda-se para a Europa, onde ainda publicou vários livros, principalmente sobre suas viagens.
Outra história incrível contada no evento é a de Júlia Lopes de Almeida, que, segundo o escritor Luiz Ruffato, estava entre os escritores brasileiros mais lidos e conhecidos do final do século XIX. “Júlia era muito popular no Rio de Janeiro e fazia concorridos sarais em sua casa. Seu romance A Falência é um dos maiores da época. Por que ela foi apagada da história da literatura brasileira? Simplesmente por ser mulher”, diz Ruffato.
O escritor conta que Lopes de Almeida era tão respeitada que, quando se começou a cogitar a fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL), um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo citava a autora entre os fundadores. Seis meses depois, quando a ABL é de fato criada, em julho de 1897, Júlia não está em seus quadros, mas seu marido (um poeta português medíocre, Filinto de Almeida) sim. Nas rodas da época, ele era chamado de “acadêmico consorte”. Ao todo, essa autora de quem nunca ouvimos falar publicou dez romances, cinco livros de contos, oito peças teatrais, além de mais 12 obras diversas, que vão de Livro das Noivas a Contos Infantis. Felizmente, recentemente a Unicamp incluiu A Falência como leitura obrigatória para seu vestibular. Com isso, há algumas edições do livro disponíveis para quem quiser conhecê-la. Entre eles, uma edição da Companhia das Letras, com prefácio da Luiz Ruffato.
Esse veto vergonhoso às mulheres na ABL durou até 1977, com a eleição de Rachel de Queiroz. Atualmente, das 40 cadeiras da Academia, cinco são ocupadas por mulheres. Como vemos, equidade não é um característica dos nossos imortais. Nem do mercado editorial, já que 70% dos livros publicados no país são de homens (possivelmente a maior parte brancos, do centro sul).
Termino, porém, com uma preciosidade, que mostra sozinha o quanto nós mulheres avançamos, mas como não podemos descuidar e continuar atentas e na luta. Trata-se de um trecho de carta do poeta Ovalo Bilac para sua noiva poetisa Amélia de Oliveira:
“Minha Amélia (...) Antes de tudo quero dizer-te que te amo, agora mais do que nunca, que não me sais um minuto do pensamento, que és minha preocupação eterna, que vivo louco de saudade, (...) Não me agradou ver um soneto teu (...) desagradou-me a sua publicação. Previ logo que andava naquilo o dedo do Bernardo ou do Alberto. Tu, criteriosa como és, não o faria por tua própria vontade (...) Há uma frase de Ramalho Ortigão, que é uma das maiores verdades que tenho lido: - "O primeiro dever de uma mulher honesta é não ser conhecida". - Não é uma verdade? (...) há em Portugal e Brasil cem ou mais mulheres que escrevem. Não há nenhuma delas de quem não se fale mal, com ou sem razão (...). Não quer isto dizer que não faça versos, pelo contrário. Quero que os faças, muitos, para teus irmãos, para tuas amigas, e principalmente para mim, - mas nunca para o público (...) Teu noivo Olavo Bilac. São Paulo, 7 de fevereiro 1888" (ELEUTÉRIO. 2005, p.32).
Homens, de todas as épocas, odeiam mesmo é concorrência.

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