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Mesmo quando anda pra trás, felizmente a roda é viva e sempre pode mudar

Teatro Oficina, aberto pra cidade.
Quando comprei as entradas para assistir à montagem de Roda Vida, no Teatro Oficina, há um mês, o que me moveu foi a vontade de conhecer esse espaço de resistência e inovação da cidade neste momento de retrocessos múltiplos que me indignam a cada dia. Foi meu marido que me chamou a atenção para a data que tinha escolhido, confesso que aleatoriamente: 31 de março. O que já era para ser um programa bacana em família, passou a ter um significado mais especial a partir do momento em que Bolsonaro recomendou que se comemorasse o golpe militar que implantou a ditadura no Brasil.
Difícil descrever a emoção de estar naquele lugar com meus filhos e marido nesse domingo e sentir a energia tanto naquele palco improvável quanto na plateia, que se mistura a ele. Acho tão surreal termos um governo que em três meses só trabalhou para retirar direitos conquistados e com equipe e entourage que chegam a ser escatológicas, que necessito me cercar de pessoas que mantêm a sanidade.
Nós nos andaimes, ops, plateia.
O Oficina é mais um daqueles lugares quase mitológicos de São Paulo que eu, no meu provincianismo, não conhecia. A concepção do lugar como se fosse uma rua no lugar do palco, com a plateia às margens ocupando uma estrutura que parece um andaime, é uma experiência em si. Não sei como era antes da reforma, mas o projeto atual, de Lina Bo Bardi e Edson Elito (inaugurado em 1994), com a parede de vidro que dá para o estacionamento do Silvio Santos e o que vem além, e os inúmeros recursos usados pelos atores para estar sempre muito junto ao público dão um toque mágico. Parece que participamos do espetáculo e não apenas assistimos.
Estando ali, entendi a polêmica com o empresário/apresentador que luta há anos para construir neste terreno vizinho um grande empreendimento imobiliário. O teatro é tombado pelo Condephaat (órgão estadual de defesa do patrimônio) desde 1981 por sua importância histórica à arte do teatro nacional (e desde 2010 é tombado também nas esferas federal e municipal), o que torna qualquer construção no entorno sujeita a respeitar sua preservação. Não precisa ser um especialista em patrimônio material (no caso, a arquitetura) e imaterial (a ludicidade da arte) para olhar pelas incríveis janelas que fazem o espetáculo comungar com a cidade lá fora e perceber que qualquer intervenção no terreno vizinho que não seja o (reivindicado pelos representantes do teatro) Parque do Bixiga seria criminosa.
Sob qualquer aspecto, um empresário que ficou milionário às custas de explorar pobres com seu Baú da Felicidade e uma concessão pública deveria ter a generosidade de retribuir à sociedade com um projeto que valorizaria muito mais aquele entorno do que mais um arranha céu. Ao contrário, se empenha em liberar a obra junto aos órgãos de proteção. Acompanhemos os desdobramentos, ainda mais nesta época bicuda de devoção ilimitada ao capital.
Busca a qualquer preço por dinheiro e fama é justamente o tema de Roda Viva, de Chico Buarque, que está completando 50 anos de sua primeira exibição, quando foi sistematicamente censurada pelo regime militar. Conta a história do cantor Benedito Silva que ganha fama (após vender a alma ao diabo) e depois é engolido pela indústria cultural. Considerada subversiva e degradante pela ditadura (aquela que não existiu, não perseguiu nem torturou ninguém), teve o teatro invadido durante sua temporada paulistana, em 1968, com o cenário destruído e os atores (incluindo Marília Pera) espancados. Em Porto Alegre, os meigos espancaram os atores no hotel mesmo.
Desde então, a peça não havia mais sido encenada e apenas agora teve autorização do autor para uma nova montagem, atualizada pelo diretor Zé Celso Martínez Correa para incluir as novas mídias (internet e mídias sociais) e o inacreditável momento político nacional. A presença magnética de Zé Celso marcou o início e o final da encanação, que trouxe o samba enredo campeão de 2019 da Mangueira, História para ninar gente grande, com toda a equipe do espetáculo e o público em uma confraternização que saiu da viela cenográfica para a rua real, terminando a noite em celebração.

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