Pular para o conteúdo principal

O dote


O maior vexame da minha vida aconteceu durante uma audição de piano. Tocaria Escorregando, de Ernesto Nazareth, e Tico-tico no Fubá, de Zequinha de Abreu. Mas quando entrei no palco, me sentei e olhei para as teclas, foi como se fosse fazer um discurso e na hora em que visse o texto a ser lido ele estivesse em mandarim. Era como se fosse a primeira vez que visse um piano, não sabia por onde começar. Tomada de pânico, consegui levantar, agradecer e sair totalmente perdida. Tinha 17 anos e estudava piano há nove.
No camarim, fui recebida com abraços da atônita professora e das colegas, mas só conseguia chorar e me sentir miserável. Atendendo aos apelos de todas elas, ao final das apresentações, voltei ao palco e disparei a pior interpretação de Tico-tico no Fubá da história. Lembro de ter sido aplaudida, o que não me confortou. Meus pais, com a sensibilidade que lhes era característica, disseram que os fiz passar vergonha, me deixaram em casa com minhas lágrimas e foram comer pizza.
Depois disso, minha relação com o piano, que era de um amor displicente, se desfez. Tinha acabado de passar no vestibular e o fracasso na apresentação só fez reforçar minha convicção da absoluta falta de talento para a música. Fui eu quem, aos oito anos, pediu para estudar piano e até então nunca tinha parado. Não era novata em audições, que aconteciam todo final de ano. Quase não faltava às aulas, mas sempre fui uma pessoa de múltiplos interesses. Tocar piano me fazia bem, mas nunca cogitei estudar as quatro horas diárias recomendadas por minha professora nem ir para o conservatório para me formar pianista. Era um hobby, e talvez a falta de entendimento disso tenha colaborado para esse fracasso de palco.
Aquele ano em que terminei o segundo grau foi todo muito intenso e, como adolescente padrão, não abri mão de absolutamente nada. Estudava à noite para poder fazer cursinho durante o dia, mas também passava muitas tardes no clube (tudo bem, sempre carregava as apostilas comigo), tinha uma vida amorosa agitada e muitos amigos e programas para dar conta. E as aulas de piano. Minha mãe, que ouvia meus parcos momentos ensaiando as músicas da audição, chegou a sugerir que eu não participasse. Mas, como já disse, desistir de qualquer coisa não estava nos meus planos e não tive coragem de falar sobre isso com a professora, de quem gostava muito.
Olha e piano lá atrás como porta porta-retratos.
Levei muito tempo para superar esse trauma. Passaram-se anos até que conseguisse falar tranquilamente e outros tantos até que pudesse rir do acontecido. Ainda tentei continuar as aulas, mas perderam o encanto e a nova vida universitária foi uma desculpa convincente para parar de vez. Desde então, o piano Brasil que meus pais me deram – e que por tempo ouvi ter sido a coisa mais cara que compraram até aquele momento além da casa em que morávamos – virou peça de decoração. Mas nunca sequer cogitei me desfazer dele.
Por conta da história sobre seu valor de compra, o piano virou uma piada particular entre mim e meu marido de que era o meu dote. E assim ele passou a ser tratado desde então. Como nosso primeiro apartamento mal nos cabia, o dote teve que esperar alguns anos. Na primeira mudança, nos custou a subida de onze andares (cobrados por andar) para ganhar seu lugar de honra na sala e alguns momentos de glória, pois meu marido se apaixonou pelo dote.
Na segunda mudança, o pobre foi parcialmente desmontado para entrar no elevador. Mais tarde, com três crianças ocupando cada milímetro do apartamento, ganhar espaço se tornou um luxo maior do que um piano, e o dote foi para a chácara dos meus pais. Somente alguns anos depois, quando construímos nossa própria casa de campo, ele pode ganhar seu posto definitivo (pelo menos até agora).
Nesses mais de trinta anos de peripécias, mantive sempre a esperança de um dia, quem sabe, voltar a tocar. Hoje, saí de casa e comprei algumas partituras. Será?

Comentários

  1. Maura, a música deve ser pra alegrar, trazer felicidade. Nem que seja para um amigo tocar. Bora fazer umas festas na chácara! Pena que hoje eu só toque campainha... Também estudei piano, mas nunca meus pais quiseram comprar um. Ainsa bem...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Saneamento adaptado às mudanças do clima é chave para bem viver

  Pensar em adaptação do saneamento básico às mudanças climáticas, em uma semana de sol em São Paulo às vésperas do Carnaval, parece uma péssima ideia. Ninguém quer se lembrar de problemas relacionados a chuvas ou falta de chuvas, que, no caso da cidade, remete a inverno. Mas, talvez, justamente por estarmos fora da emergência, seja o melhor momento. Ainda mais porque a maior parte das adaptações necessárias também pode minimizar esse calor em ondas cada vez mais fortes. Em “Adaptação e Saneamento - Por um setor resiliente às mudanças climáticas" , publicação recém-lançada pelo Instituto Água e Saneamento (IAS), da qual participei, mostramos por que a adaptação dessa área é fundamental para garantir o bem viver nas cidades. Sem uma drenagem pensada para a nova realidade, ficaremos sem mobilidade – a parte mais visível da equação -, mas também sem abastecimento de água, sem tratamento adequado de esgotos, sem habitações de qualidade e com sérios problemas de saúde pública. Na pesqu...

Há uma conspiração contra todos nós

 Quem estiver interessado em saber por que Jeff Bezos, Mark Zuckerberg e companhia estão todos faceiros lambendo as botas de Donald Trump assista ao documentário Conspiração Consumista, de Nic Stacey, na Netflix. O título original em inglês, ainda traz um complemento mais explicativo: Buy Now! (compre agora), retirado na versão em português. O filme mostra como as grandes corporações contam com a tecnologia/redes sociais para fazer com que as pessoas consumam cada vez mais, sem nem pensar no assunto. Para isso, usam estratégias sofisticadas para esconder informações e mentir descaradamente para que as pessoas ajam contra seus próprios interesses e ainda achem que as empresas se preocupam com seu bem-estar.  O diferencial deste documentário é trazer depoimentos de pessoas com altos cargos dentro dessas corporações, como Amazon e Adidas, que colaboraram para a criação destas estratégias e hoje lutam contra elas, por perceberem o quão insustentáveis são. Ver imagens de produtos d...

Eventos Extremos, o show

  Enquanto a cidade de São Paulo passava por mais um dia de caos por conta das chuvas na última terça-feira (18/2), uma turma muito animada se reunia na Casa das Caldeiras no final de mais um dia de trabalho de avaliação e discussão justamente sobre as mudanças climáticas. Esse pessoal faz parte do Observatório do Clima, uma rede de organizações de todo o Brasil que trabalha para reduzir as emissões de carbono, minimizar seus efeitos deletérios, divulgar a enrascada em que nos metemos ao não levar a ciência a sério e tentar mudar o rumo dos acontecimentos enquanto é tempo. Quando cheguei lá, no final da tarde, para encontrar alguns desses meus amigos-heróis, ainda não sabíamos que mais uma pessoa (desta vez uma motorista de aplicativo) tinha perdido a vida em uma enchente, nem de todos os estragos na Zona Norte da capital paulista. Aliás, na Zona Oeste, a chuva nem tinha dados as caras ainda. Com todos os motivos para entrar em desespero, essa turma, como eu disse, é muito animada,...