Pular para o conteúdo principal

Exposição resgata história do “Treme-treme” paulistano

Fachada do São Vito, em foto da exposição do Sesc

 Uma das passagens mais interessantes no livro Minha História, de Michelle Obama, quando conta sobre a decadência do bairro onde cresceu em Chicago, é que a ideia da degradação de um local vem antes que a degradação em si. No caso, o medo das famílias brancas de que o aumento da população negra no bairro o empobreceria, fez com que se mudassem e, com isso, as famílias negras mais abastadas passassem a fazer o mesmo movimento. Com isso, se realizou a profecia inicial, com a piora na qualidade das escolas e aumento da violência, entre outros problemas.
Esse movimento é um velho conhecido de São Paulo e um dos casos mais bem acabados é a região do Parque D. Pedro II, no Centro, que sucumbiu a partir da migração (ainda em curso) das elites rumos à zona sul. A dimensão desse abandono foi tão poderosa que todas as tentativas de recuperação até agora, seja com uma intenção mais social ou com fins de gentrificação, deram com os burros n’água. Em qualquer um dos casos, os grandes perdedores sempre foram os moradores resistentes e a própria cidade, que expande seus domínios deixando para trás redutos abandonados pela urbe, sem nenhuma qualidade de vida, beleza ou memória.
Um exemplo de tudo isso é a história do edifício São Vito, inaugurado em 1959 e demolido em 2011, em cujo espaço hoje está instalada a Ocupação Sesc Parque Dom Pedro II, que, como o próprio nome diz, não é uma propriamente uma unidade como as demais do Sesc, mas um conjunto com quadras, palcos e containers que, apesar de bacana, não chega aos pés do projeto previsto para quem sabe um dia para o local.
Mas é justamente ali que se encontra (até 5 de maio) a exposição São Vito: uma escavação, que resgata a história dessa parte do centro de São Paulo a partir da saga daquele prédio que o preconceito da metrópole batizou de “Treme-treme”. Monitores atenciosos ajudam os curiosos a entender melhor o que está na mostra, concebida pela Grifo Projetos, com pesquisa e desenvolvimento de Lygia Rodrigues, Thaís Gurgel e Camila Mouri.
Construído na mesma época de seu vizinho - igualmente demolido - edifício Mercúrio, o São Vito já é fruto de uma certa decadência da região, originalmente às margens de um sinuoso rio Tamanduateí e cercada pelo então lindíssimo Parque Dom Pedro II. A prova da importância do local é a suntuosidade do Mercado Municipal, que, com seus incríveis vitrais, pode-se dizer que era um shopping center dos anos 1930, quando foi inaugurado.
Com o tempo, o Tamanduateí sofreu várias retificações, avenidas foram construídas e, quando os dois prédios foram construídos, com seus apartamentos muito pequenos (na época quitinetes; hoje seriam estúdios, kkk), eram voltados para uma população urbana de classe média, como os estudantes das faculdades do entorno. Com a desvalorização da região, o padrão de moradores foi empobrecendo e, na década de 1980, passou a ser tratado pela grande imprensa como um cortiço ou favela vertical, como mostra o trecho de reportagem de O Estado de S. Paulo, de 1987, presente na mostra:
“O edifício São Vito, enorme cortiço de 37 andares, com 624 quitinetes, é um território livre dentro da cidade de São Paulo, as margens do Tamanduateí. Dentro dele, as leis brasileiras não são obedecidas e seus cinco mil moradores tentam seguir um código próprio. A polícia – nem mesmo a Guarda Civil Metropolitana – não se atreve a entrar no prédio”, diz o repórter, se queixando de também ter sido impedido de entrar. Consigo imaginar por quê. Trabalhando na época no jornal Shopping News, sob o comando do saudoso Aloísio Biondi, jornalista pouco afeito a ideias prontas, visitei o São Vito e encontrei, na verdade, muitas famílias de trabalhadores, grande parte delas proprietárias dos apartamentos. A precariedade realmente existia, por conta da pobreza (dentro do edifício e no seu entorno).
Mas como pobre não tem voz nem vez no Brasil, ao invés de ajuda para revitalizar o prédio, seus moradores ganharam mesmo o despejo (parece que a maior parte recebeu indenizações ridículas). Os poucos que conseguiram se manter na região, pelo que me contaram na exposição, têm antipatia pelo Sesc, por ocupar um lugar que era deles. O incrível é que todo o trabalho de expulsão dos moradores e demolição dos dois edifícios não resultou em nenhuma das justificativas alegadas para que ocorressem: nem embelezamento urbano, nem renovação ou revitalização urbana, nem gentrificação (esta última se aproxima, via aproximação da verticalização do Belenzinho, ali do lado).
Para quem quer entender um pouco sobre os termos urbanísticos, conforme a exposição.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Existe vida profissional após a maternidade: só tem mais emoção

  Lembrei-me desta história conversando com uma amiga grávida preocupada com seu futuro profissional. Minha narrativa não chega a ser um alento, mas posso atestar que, apesar de aventuras como esta, é possível ser mãe e profissional! Quando me tornei mãe de gêmeas, já com um filho de três anos, achei que minha vida profissional e toda mais havia se encerrado. Mas eis que, passados três meses, voltei ao trabalho e o mundo continuou a rodar, mesmo que em sistema de adaptação. Assim que as bebês completaram dez meses, me senti pronta para a primeira viagem profissional pós-revolução. A missão era uma expedição ao Vale do Ribeira para identificar necessidades das populações ribeirinhas e quilombolas que ajudassem a direcionar a ação do Instituto Socioambiental (onde eu trabalhava) naquela região. Na equipe, uma antropóloga, um advogado e eu, a jornalista que reportaria as andanças. Em Iguape, onde estava nossa base, um biólogo se juntaria ao time. Deixei meu apartamento em um clima d

A air fryer e a ilusão capitalista

Fui apresentada à air fryer durante a pandemia. Não pessoalmente, pois me encontrava em isolamento em uma chácara, digamos, isolada, mas através das reuniões de Zoom. Era só termos uma pausa hidráulica ou nos aproximarmos da hora do almoço e alguém soltava: “chegou minha air fryer!” Dali pra frente, mesmo que estivéssemos discutindo o destino da Amazônia ou do Cerrado, de florestas, a índios, a gado, a rios, enfim, qualquer coisa mundana trivial, tudo era esquecido. As maravilhas que eram possíveis de fazer rapidamente, sem óleo, sem trabalho, apenas jogando o que quer que fosse naquela que entendi ser uma panela elétrica, tornavam-se o centro das atenções. Os rostos apáticos nas telas ganhavam vivacidade e a troca de dicas e receitas e declarações de amor ao mais importante utensílio doméstico criado desde a invenção do fogão à lenha tomavam toda a atenção. Frango à passarinho ou batata frita, legumes e arroz em minutos, forrar com papel alumínio para facilitar a limpeza, pão de que

Com os incas, aprendi que distopias acontecem

Sempre quis conhecer Machu Picchu pela incrível beleza da cidadela, mas pouco sabia do império inca, além do fato de ter se estendido por grande parte da costa oeste do continente sul-americano e ter desaparecido com a chegada dos espanhóis. Descobrir que o Peru é um país inca – ou pelo menos o estado de Cusco com certeza o é -, foi uma surpresa. Encontrei uma população preocupada em recuperar todos os aspectos de sua cultura usurpada há 500 anos pelos conquistadores europeus e rever cada pedacinho de sua história. Machu Picchu, a joia que os espanhóis não acharam. O que ouvi de guias, motoristas, vendedores, artesão, garçons e todas as pessoas com que tive contato é uma versão ainda impensável no Brasil, país onde seus habitantes originais foram praticamente exterminados e os poucos que resistiram ainda precisam lutar por seu reconhecimento e, no momento, por garantia de vida. Lá, a população majoritariamente de descendência índia tem mais facilidade em se identificar com aque