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O que ameaça as áreas protegidas brasileiras?

Parece piada fazer essa pergunta no momento em que quase todos os biomas brasileiros estão sob ataque, principalmente governamental, e metade da população brasileira apoia o governo. Ou seja, os algozes de nossas áreas naturais somos os brasileiros mesmo. Se com essa postura estivéssemos apenas nos condenando a uma vida que tenderá a ficar desesperadora, acho que me preocuparia menos, pois é uma opção civilizatória. Mas as cenas que temos presenciado da carnificina animal, sobretudo pelo fogo no Pantanal, são das mais indignas de nossa história recente, que não é lá grande coisa.

As áreas protegidas deveriam ser nossas principais aliadas para reverter as mudanças climáticas que já não se fazem de rogadas, mas a falta de entendimento sobre sua importância e prioridades tortas as têm ameaçado sempre, com tendência crescente nos últimos anos. Ou seja, ao invés de estarmos aumentando o número dessas áreas e investindo pesado para que sejam bem geridas, assistimos a um ataque sistemático a elas. Nem vou falar agora sobre as terras indígenas e quilombolas porque persegui-las é programa de governo explícito de Bolsonaro desde sua campanha.

As unidades de conservação (nossos parques e todos os demais tipos de áreas destinadas especificamente à conservação da natureza), porém, vêm sofrendo crescentes ataques nos últimos anos no Congresso Nacional e assembleias legislativas estaduais, com uma série de tentativas de diminuição de tamanho, redução no grau de proteção ou sua total eliminação. Conhecidos internacionalmente pela sigla PADDD – do inglês Protected Areas Ddowngrading and Degazettement – esses eventos são motivados por projetos de infraestrutura, mineração e agronegócio. No Brasil, 90 casos desse tipo já ocorreram, afetando uma área total de mais de 116 mil km2, outros mais de 250 mil km2 estão diretamente ameaçados.

Esses dados fazem parte do pacote informativo lançado pelo WWF-Brasil neste ano, o qual ajudei a produzir e comecei a abordar na semana passada. O material explica, de forma didática e ilustrativa, a importância das unidades de conservação e os principais riscos que enfrentam. São cinco volumes, voltados prioritariamente para professores. Esses dados fazem parte do volume O que ameaça as áreas protegidas brasileiras?.

Entre as principais ameaças, estão a proposta de reabertura da Estrada do Colono (no Parque Nacional do Iguaçu), a redução do status de proteção do Parque Nacional Campos Gerais (ambos no Paraná), da Estação Ecológica de Tamoios (no Rio de Janeiro) e as propostas de redelimitação dos parques nacionais Serra da Bodoquena (Mato Grosso do Sul) e Lençóis Maranhenses (Maranhão).

As unidades de conservação estão ameaçadas, ainda, pela proposta do Ministério do Meio Ambiente (MMA) de revisar todos os limites e categorias de unidades de conservação federais. Nos últimos cinco anos (entre 2013 e 2018), o orçamento do MMA caiu R$ 1,3 bilhão, passando de R$ 5 bilhões para R$ 3,7 bilhões. De 2017 para 2018, o ICMBio, responsável pela manutenção das unidades de conservação, teve redução de 44% em seu orçamento.

Um exemplo comezinho do que acontece. Sem nenhuma manifestação contrária, deputados da Assembleia Legislativa de Rondônia fizeram desaparecer, em menos de uma hora de discussão, mais de meio milhão de hectares de áreas protegidas na Amazônia. De uma só vez, há exato um ano (setembro de 2019), riscaram do mapa onze unidades de conservação no estado, com tramitação em tempo recorde: o projeto foi protocolado no meio da manhã e, à tarde, já estava aprovado. A maior delas é a Estação Ecológica Soldado da Borracha, de 1.789 km2.

Outro caso, ainda não efetivado, mas com porteira está aberta e boiada louca para passar, é a ação judicial movida por antigos proprietários que não foram indenizados no Parque Nacional da Bodoquena, em Mato Grosso do Sul. A ação visa a reduzir a área do parque de 76 mil hectares, para 20% disso (cerca de 15 mil ha). O parque abriga mais de 170 tipos diferentes de árvores e fauna ameaçada de extinção. Além disso, é o local onde nascem alguns dos rios mais importantes para as atividades que fazem de Bonito um dos principais destinos de ecoturismo no país. Resolver questões como essa é essencial para acabar com as ameaças às áreas protegidas, sem que a solução seja punir o meio ambiente e toda a vida que dele depende.

(Foto: Queimada na Amazônia no estado do Pará,2019. Araquém Alcântara/WWF-Brasil)

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