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Favela na calçada


A permanência da existência de favelas na nossa sociedade, como se fosse a coisa mais natural do mundo, já é uma aberração. Mesmo as famosas, como Heliópolis e Paraisópolis, hoje mais bairros pobres (romantizados em novelas de TV), me deixam indignada pela lógica de castas de cidadãos. Mas ver uma favela se formar, não em um terreno sem uso ou ocupação social e à mercê da especulação imobiliária, mas em plena calçada, é demais para mim.

Em plena Vila Leopoldina, na rua Hassib Mofarrej (esquina com a rua Balmann), há menos de 50 metros da escola da minhas filhas, cresce horizontal e verticalmente uma favela espremida entre os muros (não sei do que) e a rua. Não faço a mínima ideia de como aquelas pessoas têm (se é que têm) acesso à água, por exemplo. Vivem em um ambiente de suprema insalubridade, no qual a proliferação de mosquitos é apenas uma das consequências.

A cada vez que passo por ali fico pensando se ou o que eu deveria fazer. Já pensei em ligar para a administração regional, mas aí me pergunto se existe a mínima possibilidade de eles não saberem que a favela existe. Claro que não! Assim, acredito que não fazem nada porque não querem, não podem ou não sabem o que fazer. A região é próxima da Ceagesp e pessoas acampando nas calçadas, recuos de imóveis e canteiros centrais é tão comum quanto os horrendos fios, calçadas e ruas esburacadas que estão por toda a cidade e, talvez para nos proteger, acabamos abstraindo de olhar. Dizem que é porque há bicos na Ceagesp e as pessoas vem de longe para tentar consegui-los.

Sou meio ingênua, mas também me pergunto: se a Ceagesp precisa dessas pessoas, porque não tem (ou é obrigada a ter) locais dignos para abrigá-las? A favela da calçada deve existir pelo mesmo motivo, só que esses trabalhadores resolveram trazer a família para ficar por perto. Que cidade é esta que se abastece a custas de pessoas sendo marginalizadas?

Agora com o bairro valorizando (parece incrível, mas há condomínios do tipo varanda gourmet pipocando de monte por lá), dizem que a Ceagesp vai sair (coisa que ouço há muito tempo e só acredito vendo). Se isso acontecer, o que vão fazer com toda essa gente? Vão deixar surgir novas favelas no novo endereço, mais longe e em lugar onde não podemos ver? Isso é resolver o problema?

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