Pular para o conteúdo principal

Culto à misoginia*


Travestido de estiloso e moderno, por trazer pseudoinovações (Guimarães Rosa foi bem mais eficiente, já que usar só caixa baixa não é exatamente um grande achado estilístico), o livro “o remorso de baltazar serapião”, de Valter Hugo Mãe, é um culto à misoginia. O autor tenta disfarçar o intento, ao mostrar a vida como dura e sem sentido para todos os personagens, mas o prazer com que descreve (em primeira pessoa, através de seu bronco personagem) os atributos físicos, fisiológicos e intelectuais femininos da forma mais torpe que já vi na literatura é inegável (nem Nelson Rodrigues conseguiu chegar perto, coitado!).


O livro é premiado e elogiado por Saramago etc., mas curiosamente não encontrei uma resenha sequer escrita por mulher. Todos os elogios citam a misoginia do texto, mas parecem ter caído na armadilha de ser esta mais uma das dores do mundo e não “A” fonte de inspiração do livro, cuja centralidade na vaca não deixa dúvidas. Um exemplo, que parece chegar perto da questão, é a crítica de Sérgio Rodrigues, que conclui:

“(...) o remorso de baltazar serapião se torna mais forte e mais incômodo quando a misoginia visceral do mundo que retrata, exposta com brutalidade na paulatina subtração física a que os maridos submetem as mulheres, parece se infiltrar no tecido narrativo. Ao perder a voz, aquela voz feminina que “vinha das caldeiras fundas onde só o diabo e gente a arder tinham destino”, como anuncia o narrador já na primeira frase, a mulher finalmente se entrega ao amor do homem. É tarde: tudo já deu em nada, a humanidade perdeu. De pé só resta Sarga, a vaca, com sua inútil compaixão.”

A misoginia é constante na história da humanidade. Ela está presente na bíblia judaica e em cartinhas do Novo Testamento (apenas Jesus Cristo parece não ter comungado dela), e se perpetua através dos tempos nos cintos de castidade, mutilações de clitóris, burcas, prostituição e afins. Ela compraz os homens desde que o mundo é mundo.

Isso por si só já é um grande problema, mas poderia ser aos poucos extirpado se a outra metade da humanidade (que na verdade é a maioria – só no Brasil somos 6 milhões a mais) não compactuasse voluntária e contentemente com ele. Acredito que isso pode não ter sido sempre verdade (e ainda não o seja para todas as culturas), mas é fato inequívoco na sociedade Ocidental. Vejamos.

Somos menores (parece que 15% na média) e mais fracas fisicamente do que os homens. Só aí, já há uma desvantagem enorme, que fez ao longo de milênios as mulheres se sujeitarem a machos que as defendessem e sustentassem (essa vantagem competitiva do sexo masculino foi fundamental na hora de caçar mamutes ou carregar a cria e pertences em longas caminhadas – lembrem-se, que a cada passo dado por um homem, uma mulher dá praticamente 1,5 – façam as contas no final de um dia caminhando quilômetros e quilômetros...).

Essa relação de poder se perpetua no tempo através de religião e força (vide Oriente Médio, regimes tribais africanos). Mas não é o que acontece no Ocidente, onde as mulheres finalmente se rebelaram, queimaram seus sutiãs (espartilhos? cintos de castidade?), ganharam o direito de eleger e de mandar (temos aqui mesmo a terceira mulher mais poderosa do mundo – estaria ela também na lista dos humanos mais poderosos?) e de fazer sexo com quem quiserem (viva a pílula!). No entanto, estamos, de livre e espontânea vontade, ficando apenas com a pior parte dessas conquistas.

Lutamos, enfrentando muita resistência, pelo direito de estudar e entrar no mercado de trabalho remunerado (já que mulher nunca ficou um dia sem trabalhar – e olha que puxar água de poço e lavar roupa no rio é trabalho braçal tão duro quanto carregar pedra). Passado o susto, porém, os homens se tranquilizaram: “elas não deixaram de cuidar de nossos filhos, da nossa casa, da nossa comida e de fazer sexo quando tivermos vontade. E, ainda por cima, tiraram de nossos ombros a responsabilidade de garantir o sustento da prole se quisermos perpetuar nossos genes. Podem fazer isso sozinhas, nos permitindo ficar apensas com a parte boa. De agora em diante, se falta provento à família, a responsabilidade, no mínimo, é compartilhada (em troca, podemos, de vez em quando, trocar uma fralda, que não mata ninguém).”

Mas o ódio a esse ser que pode se virar sozinho só fez aumentar: agora os homens ganharam novos direitos, como o de contar as piores piadas e fazer os mais grosseiros comentários não apenas entre eles, mas na frente delas (mesmo que sejam pequenas mulheres em formação) e de justificar suas grosserias como o preço a pagar pela “liberdade” e “igualdade” conquistadas.

Até aí, volto a dizer, nenhuma surpresa...

A gota d’água é ver as próprias mulheres se submeterem a carregar o mundo nas costas – com suas duplas jornadas – e ainda buscarem a submissão sexual. Ler um livro como “o remorso de baltazar serapião” deveria ser uma ofensa tão grande quanto ler o artigo do Luiz Felipe Pondé, na Folha desta semana, defendendo que mulher gosta de apanhar e este é o mundo real. Mais triste ainda é ver que ele justifica isso citando o sucesso do livro Cinquenta Tons de Cinza, escrito por uma mulher e idolatrado por elas mesmas. Que recado estamos enviando para nossos homens?

Pior do que tudo isso, é ver mulheres se mutilando e exibindo a prova publicamente: em seus rostos, seus seios e, agora, em suas genitálias, para poder melhor se submeter à competitividade por um macho (para sustentá-las? para humilhá-las?). Não me admira ver adolescentes bulímicas e se cortando com giletes. Comportamentos semelhantes são infinitamente incomuns em indivíduos do sexo masculino, que, sabemos porquê, são muito mais felizes com a própria existência.

No suplemente Equilíbrio (da Folha) nesta mesma semana do artigo do Pondé, além da matéria de capa “Costura íntima” sobre as plásticas de vagina, há um artigo dizendo que, para muitas mulheres, o sexo se tornou uma obrigação e que preferem fingir a dizer não (DEPOIS DE CONQUISTAR O DIREITO DE TRANSAR QUANDO QUEREM, lembram?), e outra matéria em que mulheres propõem um jejum de espelho para escapar da obsessão com a aparência e melhorar a autoconfiança (DEPOIS DE NÃO PRECISARMOS DE HOMEM PARA NOS SUSTENTAR, lembram?). Outro artigo, ainda, mostra que a exibição de corpos esqueléticos na mídia faz com que as mulheres achem seus próprios corpos enormes (SÃO AS PRÓPRIAS MULHERES QUE CONSOMEM ESSE PADRÃO IRREAL, lembram?). Aliás, quem aí está de regime?

*Artigo para o Clube Feminino de Leitura (CFL), grupo de paulistanas que adoram ler, se encontrar e polemizar juntas.

DEFINIÇÔES DE MISOGINIA (WIKIPÉDIA)

Misoginia é o ódio ou desprezo ao sexo feminino (mulheres ou meninas). A palavra vem do grego misos (μῖσος, "ódio") e gyné (γυνή, "mulher"). É paralelo à misandria, o ódio para com o sexo masculino. Misoginia é o antônimo de filoginia[1], que é o apreço, admiração ou amor pelas mulheres.

De acordo com o sociólogo Allan G. Johnson, "a misoginia é uma atitude cultural de ódio às mulheres porque elas são femininas." Johnson argumentou que:

"A [misoginia] é um aspecto central do preconceito sexista e ideológico, e, como tal, é uma base importante para a opressão de mulheres em sociedades dominadas pelo homem. A misoginia é manifesta em várias formas diferentes, de piadas, pornografia e violência ao autodesprezo que as mulheres são ensinadas[2] a sentir pelos seus corpos."

Michael Flood define a misoginia como o ódio às mulheres, e observa:

"Embora mais comum em homens, a misoginia também existe e é praticada por mulheres contra outras mulheres ou mesmo elas próprias. A misoginia funciona como uma ideologia ou sistema de crença que tem acompanhado o patriarcado ou sociedades dominadas pelo homem por milhares de anos e continua colocando mulheres em posições subordinadas com acesso limitado ao poder e tomada de decisões. [...] Aristóteles sustentou que mulheres existem como deformidades naturais e homens imperfeitos[3] [...] Desde então, as mulheres em culturas Ocidentais têm internalizado seu papel como bodes expiatórios da sociedade, influenciadas no século 21 pela objetificação das mesmas pela mídia com seu autodesprezo culturalmente sancionado e fixações em cirurgia plástica, anorexia e bulimia."



[1] Alguém conhecida este termo? Sintomático, não?
[2] Por quem? Por seus pais? Por suas mães?
[3] Acho que descobrimos onde nosso angolano lusitano se inspirou...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Existe vida profissional após a maternidade: só tem mais emoção

  Lembrei-me desta história conversando com uma amiga grávida preocupada com seu futuro profissional. Minha narrativa não chega a ser um alento, mas posso atestar que, apesar de aventuras como esta, é possível ser mãe e profissional! Quando me tornei mãe de gêmeas, já com um filho de três anos, achei que minha vida profissional e toda mais havia se encerrado. Mas eis que, passados três meses, voltei ao trabalho e o mundo continuou a rodar, mesmo que em sistema de adaptação. Assim que as bebês completaram dez meses, me senti pronta para a primeira viagem profissional pós-revolução. A missão era uma expedição ao Vale do Ribeira para identificar necessidades das populações ribeirinhas e quilombolas que ajudassem a direcionar a ação do Instituto Socioambiental (onde eu trabalhava) naquela região. Na equipe, uma antropóloga, um advogado e eu, a jornalista que reportaria as andanças. Em Iguape, onde estava nossa base, um biólogo se juntaria ao time. Deixei meu apartamento em um clima d

A air fryer e a ilusão capitalista

Fui apresentada à air fryer durante a pandemia. Não pessoalmente, pois me encontrava em isolamento em uma chácara, digamos, isolada, mas através das reuniões de Zoom. Era só termos uma pausa hidráulica ou nos aproximarmos da hora do almoço e alguém soltava: “chegou minha air fryer!” Dali pra frente, mesmo que estivéssemos discutindo o destino da Amazônia ou do Cerrado, de florestas, a índios, a gado, a rios, enfim, qualquer coisa mundana trivial, tudo era esquecido. As maravilhas que eram possíveis de fazer rapidamente, sem óleo, sem trabalho, apenas jogando o que quer que fosse naquela que entendi ser uma panela elétrica, tornavam-se o centro das atenções. Os rostos apáticos nas telas ganhavam vivacidade e a troca de dicas e receitas e declarações de amor ao mais importante utensílio doméstico criado desde a invenção do fogão à lenha tomavam toda a atenção. Frango à passarinho ou batata frita, legumes e arroz em minutos, forrar com papel alumínio para facilitar a limpeza, pão de que

Com os incas, aprendi que distopias acontecem

Sempre quis conhecer Machu Picchu pela incrível beleza da cidadela, mas pouco sabia do império inca, além do fato de ter se estendido por grande parte da costa oeste do continente sul-americano e ter desaparecido com a chegada dos espanhóis. Descobrir que o Peru é um país inca – ou pelo menos o estado de Cusco com certeza o é -, foi uma surpresa. Encontrei uma população preocupada em recuperar todos os aspectos de sua cultura usurpada há 500 anos pelos conquistadores europeus e rever cada pedacinho de sua história. Machu Picchu, a joia que os espanhóis não acharam. O que ouvi de guias, motoristas, vendedores, artesão, garçons e todas as pessoas com que tive contato é uma versão ainda impensável no Brasil, país onde seus habitantes originais foram praticamente exterminados e os poucos que resistiram ainda precisam lutar por seu reconhecimento e, no momento, por garantia de vida. Lá, a população majoritariamente de descendência índia tem mais facilidade em se identificar com aque