Pular para o conteúdo principal

1984


Quando instalaram câmeras nos elevadores do meu prédio – e olha que fomos pioneiros! – a diversão dos meus filhos era ficar fazendo micagem pra elas. Mesmo bem pequenos, eles se sentiram agredidos por serem vigiados e esta era uma forma de protestar. O tempo passou e hoje acredito que praticamente não haja elevadores sem câmeras, flagrando briga de vizinhos e esposa fugindo com marido em pedaços guardados em malas. Na maior parte do tempo, porém, continuo achando que apenas ajudam os porteiros a passar o tempo e se divertir com as inevitáveis indiscrições das pessoas que, acostumadas com o treco, esquecem que ele está lá.

As câmaras passaram a fazer parte de nossas vidas também do lado de fora dos prédios e, justiça seja feita, têm ajudado a reconhecer ladrões, brigões e motoristas bêbados ou imprudentes soltos por aí. Também estão em lojas, restaurantes e quase todo espaço público que podemos imaginar. Como bandido não é bobo, a tendência é que cada vez menos exemplares da espécie se arrisquem por aí sem um capacete, boné, óculos e tudo o que servir para disfarçá-los. Mais uma vez, sobrará para nós, pobres mortais comuns, cuidarmos o que fazemos com nossas mãos, rostos e qualquer outra parte comprometedora achando que estamos sós ou não sendo observados.

O problema é que a sanha do Grande Irmão não tem limites. Nesta semana, um dos assuntos na cidade foi a instalação de câmaras nas classes do Colégio Rio Branco. Alunos indignados se manifestaram e, veja só, levaram suspensão. A diretora, muito cândida, explicou que as câmaras estão nas classes por motivo de segurança (contra o que?). Na Folha, opiniões de educadores contra (ufa!) e a favor(!). Para chegarmos ao 1984 de George Orwell (com quase 30 anos de atraso), só falta as câmeras serem instaladas dentro de nossas casas.

Não consigo achar que isso é normal, mesmo no mundo violento em que vivemos (será que é mesmo mais violento do que em outras épocas?). Com certeza, se fosse na escola dos meus filhos, eu reclamaria. Prefiro discutir com eles, na mesa do jantar, se o professor foi injusto na bronca, se a observação do colega foi bulling, se colar é uma coisa legal, do que ter a confirmação de qualquer uma dessas coisas através de uma câmera. A dúvida e a controvérsia são partes da vida e do crescimento. Se as pessoas que estamos formando só se comportarem porque estão sendo filmadas, é porque não estão sendo formadas corretamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Clubes de leitura: revoluções individuais a partir dos livros

Quem me conhece sabe da importância que participar de um clube de leitura tem na minha vida. Especial para mim e para as demais membras, o Círculo Feminino de Leitura-CFL, ao invés de se tornar rotina, foi ganhando maior espaço em nossas vidas ao longo do tempo e transfomou nossa maneira de ver o mundo. Por isso, ao receber da Nivia, uma de minhas companheiras de CFL, uma foto do livro Clubes de Leitura – Uma aposta nas pequenas revoluções (Solisluna Editora), de Janine Durand e Luciana Gerbovic, fiquei com coceira nos olhos e fui correndo comprar. As autoras escrevem a partir de suas experiências de mediadoras de clubes de leitura e abordam o potencial da literatura como caminho para libertação pessoal. Advocam que a literatura é um Direito Humano, mas pouco respeitado no Brasil. As duas são articuladoras do Programa Remição em Rede, que fomenta clubes de leitura em unidades prisionais para remição da pena por meio da leitura. Trazem depoimentos tocantes de pessoas transformadas pelo...

Calorão no inverno parece bom, mas não é

Lembro de acordar e sentir cheiro de orvalho, encontrar o chão do quintal e as calçadas molhadas de manhãzinha. Era assim todos os dias em São Paulo. E lembro de como odiava os dias garoentos do outono e o frio no meu aniversário, no final de julho. E de reclamar durante agosto inteiro de me levantar cedo para ir para a escola. Detestava ter que me agasalhar demais, às vezes com toca e luvas, e ainda me sentir gelada. Mas tudo isso foi há muito tempo, quando eu era criança. Já na faculdade de Geografia, aprendi com a professora Magda Lombardo o que eram as ilhas de calor e como a urbanização levou embora o orvalho e a garoa da cidade, aumentando sua temperatura. Nada que se compare, porém, com este inverno atípico que assistimos agora, sem saber se ele é apenas excepcional ou o novo normal. A questão é que, para a maior parte das pessoas, que gostam de sol e calor, este tem sido um inverno bom, e estou entre elas. É delicioso não precisar usar casacões, poder dormir, no máximo, com...

80% da água doce da Terra está na Antártica

  De todos os locais que gostaria de conhecer, mas duvido que consiga, a Antártica está no topo da lista. É muito longe, é muito caro, é muito frio. Mas é fascinante. Estou aqui embevecida com o livro Expedições Antárticas, do fotógrafo e biólogo Cesar Rodrigo dos Santos, que teve o privilégio de estar 15 vezes por lá, entre 2002 e 2017, e registrar imagens de tirar o fôlego. O livro ainda tem com o plus dos textos serem da minha amiga Silvia Marcuzzo, que conta as aventuras de Cesar, e nos traz detalhes da infraestrutura e o trabalho desenvolvido pelo Brasil no continente gelado, da geografia e da biodiversidade locais, assim como os desafios do último lugar remoto do planeta. É uma região sobre a qual tudo o que sabemos, normalmente, se resume às suas paisagens de horizontes brancos infinitos e pinguins amontoados. Mas é um território a ser muito estudado, até porque as mudanças climáticas podem modificar rapidamente o que conhecemos até agora: “O continente antártico é reple...