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O céu é a nova fronteira


Olhar o céu é uma experiência quase transcendental para uma paulistana que, de seu apartamento, não consegue nem ver a lua. Estrelas são artigo tão remoto quanto cobras e jacarés. Mas há mais de um mês na chácara em quarentena, viciei. Paro tudo o que estiver fazendo pontualmente para ver o pôr-do-sol, que tem se esmerado nesse tempo seco e de céu limpo. Só não aplaudo porque meus filhos me proibiram.

Um pouco mais tarde, quando a escuridão se impõe, mas o frio ainda não deu as caras, passo alguns minutos admirando o firmamento. Nessa hora, me transporto para a infância e acompanho as fases da lua, procuro Vênus e Marte, as Três Marias, o Cruzeiro do Sul, tento contar as estrelas e escolher a mais brilhante. É o momento de paz que antecede a queda na realidade de quando ligo a TV para o noticiário.
Deitar no gramado para mirar o céu embrulhada em mantas de avião (sim, peguei algumas de souvenirs), é minha maneira de viajar e me sentir conectada ao mundo em época de pandemia. Raramente, um avião corta a paisagem, com sua luz vermelha, e interrompe o silêncio, outro artigo de luxo que tenho cultivado com muito carinho. Nada que se compare ao antigo normal.
Mas em algum momento, na semana passada, uma estrela se mexeu... Infelizmente não era uma estrela cadente, coisa que vi tão poucas vezes na vida. Ela se movia bem mais alto e um pouco mais rápido do que um avião e se misturava às outras estrelas. Perdi de vista sem saber do que se tratava. Decidi não pensar mais nisso, por medo de estar ficando mais louca que o necessário – minha costumeira indignação com as mazelas vindas do planalto central tem se multiplicado ultimamente e a família tem duvidado de minha sanidade.
No último sábado, porém, foi impossível ignorar. Os pontos luminosos viajavam em fila indiana ou em pares, a velocidade e órbita constantes. Contamos mais de trinta em meia hora – Ufa! Tive várias testemunhas.
Como mistério atualmente é só o que vai na cabeça de terraplanistas e suas variantes políticas e epidêmicas, uma pesquisa rápida no Google nos informou que são satélites do Elon Musk, que quer formar uma constelação de 12 mil satélites artificiais para criar uma rede global de internet de banda larga. Toda minha alegria de imaginar que eram OVNI chegando para acabar com a lambança que os humanos estamos fazendo com o planeta se esvaiu em segundos.
Fui obrigada a reconhecer que, mais uma vez, o capitalismo selvagem levou a melhor. Depois de invadir cada cantinho da Terra, tornar os oceanos lar das mais variadas espécies de plásticos, que se apoderam do domínio dos peixes como os brancos fizeram há 500 anos com os índios na América, a terra de ninguém da vez é o espaço. Já imagino as crianças do futuro, em excursões para áreas protegidas para escuro – as para ambientes naturais não tenho como prever se existirão –, olhando para o céu e tentando discernir o que é estrela, o que é satélite e outras porquices que ainda virão.
Ok, escuto as vozes da multidão me informando que é um preço baixíssimo, praticamente uma liquidação, pelo grande benefício de internet barata e em grande escala. Afinal, quem precisa olhar para o céu se tem um celular. Além disso, como empresários são pessoas muito razoáveis e boas, após o grito de astrônomos contra tanta demonstração de empreendedorismo, a SpaceX, empresa responsável pela inovação, promete criar um revestimento especial projetado para tornar o satélite menos reflexivo, na tentativa de reduzir a interferência em observações espaciais. Posso dormir tranquila. Ou não...

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