Me pergunto em qual contexto pode ser razoável dizer que
CNPJs estão na UTI e vão morrer e por isso as medidas de isolamento social
adotadas por estados e municípios devem ser rapidamente relaxadas, em meio a
uma pandemia que já matou oficialmente 10 mil brasileiros (ou seriam CPFs?),
com os números diários de vítimas subindo a cada dia. Também tento entender sob
qual ponto de vista minha liberdade (de fazer o que bem entender) está acima da
vida (de qualquer pessoa).
Além destas, fomos brindados, nesta semana nefasta, com pérolas
como a afirmação de que a pandemia já está controlada nas classes média e alta,
portanto, podemos respirar aliviados, de preferência bem perto uns dos outros
trabalhando e comprando para movimentar o “mercado”. Ou a, não menos
significativa, iniciativa de incluir empregadas domésticas como serviço
essencial. Talvez, para parcela da população, que possivelmente nunca se deu ao
trabalho de sequer registrar essas profissionais, pagá-las sem que prestem o
serviço deva ser tão aviltante quanto imaginar encontrá-las de férias na
Disney.
Acredito que a provocação feita por Cazuza, em 1988, finalmente
se revelou: o Brasil mostrou a sua cara e quem paga pra gente ficar assim.
De tudo que li para tentar assimilar esses tapas na cara
diários – que começaram a ser dados há um ano e meio, mas se intensificam
ultimamente na mesma proporção com que são abertas e fechadas covas nos cemitérios
-, o mais contundente foi o artigo O Jair que há em nós, de Ivann
Lago,
escrito no final de fevereiro, quando ainda estávamos nos despedindo do
carnaval, “negando as aparências” e “disfarçando as evidências”, como manda o
gosto musical mais condizente com a atualidade.
Nele, o sociólogo mostra como esse governo representa bem
seu eleitorado, formado pelo que chama de “brasileiro médio”, e desconstrói a “imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro
receptivo, criativo, solidário, divertido e ‘malandro’”. E mostra como, no “mundo
real”, “o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na
política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário,
interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.”
Infelizmente, esse retrato patético é o único que
se enquadra nas cenas repugnantes que temos presenciado, como os ataques a enfermeiros
e jornalistas, ou na atitude de muitos com os quais convivíamos e confraternizávamos
até ontem e que vemos vociferar contra a ciência, a imprensa e apoiar o
inaceitável.
Enquanto isso, há aquela outra parte da população
que, indignada com o que vê, tenta apagar os incêndios cada vez maiores com baldinho.
São ativistas dos movimentos sociais e ambientais que precisam passar o dia com
a boca no trombone listando as barbaridades praticadas, oficial e
extraoficialmente, pelo governo federal e fazendo manifestos e apelos que se
perdem no meio de tantas crueldades
sobrepostas contra as populações mais vulneráveis, sejam as que vivem nas periferias
das cidades, sejam as que estão nos mais remotos grotões, como índios e
quilombolas. São jornalistas, profissionais de saúde ou funcionários públicos –
como os fiscais do Ibama - hostilizados por cumprir a lei e fazer seu trabalho.
Há os que ajudam como podem, com recursos ou demonstrando apoio.
Independentemente de mais perto de qual desses espectros
cada um esteja, é um bom momento para se olhar no espelho, ter uma conversa
franca consigo mesmo e dizer honestamente o que pensa e de que lado está. Pode
continuar a dizer publicamente que não se discute política, que o mais
importante é a conciliação, que precisa respeitar a opinião de todos, que
deixando de pensar no problema ele desaparece. Mas seja sincero privadamente,
nem que seja pelo autoconhecimento. Qual é a sua cara?
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