Pela primeira vez, nos quase 12 anos do Círculo Feminino de
Leitura (CFL), pulamos um encontro mesal. Mas, finalmente, conseguimos nos
reunir remotamente. Demorei um pouco, mas gostaria de fazer algumas
considerações sobre nosso livro tema - “A menina da Montanha” -, que traz a
autobiografia da estadunidense Tara Westover. Criada em uma família mórmon fanática,
Tara só pisou em uma sala de aula aos 17 anos, já no ensino superior, depois de
uma batalha com os pais e com a própria falta de instrução. O livro a acompanha
até o doutorado em Cambridge e à sua libertação do jugo familiar.
A primeira observação interessante sobre o livro é a tradução
do nome original para o português: “Educated” passa a ser “A menina da
montanha”, o que remete falsamente a um romance adolescente. É como se o brasileiro
fosse idiotizado já de saída. Para os editores, não compraria um livro que se
chamasse Educada ou Escolarizada, que é a grande mensagem da história (será que
é isso mesmo?). Só o acesso à universidade permitiu a Tara se libertar da
opressão de sua família, que incluía abusos físicos e mentais.
Ao acompanhar a história de Tara, vemos como uma mente
fanática se constrói e como é poderosa, sobretudo na figura do pai. A escritora
é uma exceção. O livro deixa crer que há poucas chances de cura para uma
família como a sua. Particularmente em relação à mulher, o fanatismo religioso
(me desculpem as religiosas, mas todas as grandes religiões são opressoras da
mulher) impede até qualquer ideia de sororidade. A submissão impede a
compaixão, inclusive a autocompaixão. Como Tara deixa claro, a pessoa se sente
culpada pelos maus tratos que sofre.
Difícil ler o livro e não associar ao que vemos acontecer
hoje nos Estados Unidos e no Brasil. Essa horda não vê evidências, não aceita
argumentos, apenas dogmas, mesmo os que vai criando por conta própria. E, como
no filme “Idiocracy”, os cretinos acabam vencendo porque se reproduzem muito.
Impossível não fazer essa analogia com a família de Tara. Enquanto os irmãos se
reproduzem como coelhos, ela é a única sem filhos. A produção de eleitores de
Trump é avassaladora. Já devem nascer com armas e bíblias na mão. Se não
assistiram a esse filme, procurem ver. Ele é horrível e de mau gosto, mas ideia
é muito boa...
Sobre as consequências da existência em si de gente como as
personagens do livro, além de produzir contingentes de pessoas infelizes e
ressentidas, preocupadas sempre em julgar o comportamento do outro – são
infiéis, são putas etc.- e nunca o seu, produz danos que, somados, têm se
tornado praticamente irreversíveis. Aqui vai um spoiler, a ser bem-entendido
por quem ler o livro: O que é o ferro-velho dos Westouver? Toda aquela
gasolina, todos os fluídos de bateria infiltrando no solo sem nenhum controle?
Se o pai não se preocupa com a segurança dos filhos, que dirá do meio ambiente.
É muito ilustrativo quando Tara menciona, quando volta para casa após o
falecimento da avó, que a matriarca segurava um pouco, mas agora o ferro-velho
tomava toda a montanha. Dá para imaginar o galão de gasolina que eles
enterraram no solo também vazando. E a água, que o pai puxou da montanha para
não pagar ao governo? Deve ter sido um servicinho de porco, com desmatamento e
erosão.
As chances dessa água estar contaminada pelo ferro-velho são
enormes. Mas eles a usam para fazer “medicamentos”. Com a falta de higiene que
Tara descreve na família, dá para imaginar a “qualidade” de seus “medicamentos”?
Sem levar em conta a falta de qualquer aspecto científico (até eu tomo
homeopatia de vez em quando mesmo sabendo que não é nada...), dá para imaginar
o quanto a coisa toda é porca? E eles ficaram ricos com isso!
Ainda daria para dissertar muito sobre o capitalismo e sua
relação com a violência e a hipocrisia geral que os permitiu enriquecer e nunca
ser punidos pelos malfeitos em nome da fé, mas deixo para outra discussão. Fico
apenas com a imagem que me vem dessa família: um bando de sequelados física e
emocionalmente, que sobreviveram por puro milagre (nesse ponto eles têm
razão... ahahaha), que se comprazem das próprias mazelas e, quando possível,
tiram algum proveito delas. Esperam o fim do mundo, principalmente, porque não
gostam dele. E esperam o fim do mundo para se beneficiarem desse fim. Aguardam
que todos sejam eliminados para que, finalmente, sua mediocridade seja
premiada.
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