A Louca da Casa,
da escritora espanhola Rosa Montero, é um livro difícil de definir e delicioso
de ler. Parece ser um romance autobiográfico, porém não é bem isso. Pode ser
também um ensaio, mas qual é o tema? Literatura, feminismo, criatividade? Tudo
isso e mais um pouco. E muito humor, que nos transforma nas “loucas do livro” ao
nos brindar com diferentes versões sobre um mesmo acontecimento, ligado a um
romance de juventude com um famoso ator de Hollywood. Lembrei da sensação de
ler Tia Julia e o Escrevinhador, de
Mario Vargas Llosa. Não deve ser à toa que o elogio do grande escritor à obra esteja
na capa do livro, editado pela Harper Collins. A obra foi o tema da reunião
mensal do nosso Círculo Feminino de
Leitura (CFL) e nos arrebatou com a originalidade com que trata de temas
que nos são caros.
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CFL com A Louca da Casa. |
Seja quando conta suas estripulias juvenis ou quando
divaga sobre as motivações e agruras da vida de romancista, nos oferecendo casos (estes, garante, sempre verdadeiros) de autores conhecidos, Rosa traz
discussões profundas sobre o que move o escritor e a condição feminina. Sobre
esta última, começa lembrando que não é uma futilidade o fato de que, quando
todos os homens escrevem “homem”, mulheres têm que aprender a ler também
“mulher”.
O papel da mulher na literatura é um dos temas centrais
da obra. Montero lembra que, “embora as coisas tenham melhorado muito, o
feminino continua sendo o lado escuro da lua”. Conta sobre um livro de Paul
Theroux, no qual compara irmãos escritores e se esquece de citar que os mais
célebres dessa categoria são irmãs, as Bronté, que nem eram duas, mas três. E
exorta os leitores homens a se identificarem com as protagonistas mulheres, “da
mesma maneira que nós nos identificamos com os protagonistas masculinos”,
ressaltando que “essa flexibilidade do olhar nos tornará a todos mais sábios e
livres”.
Mesmo que só tenha mencionado a palavra feminista uma
vez, para dizer que, embora seja pouco precisa, resume séculos de lutas para
mudar “uma situação aberrante”, garante que a usa com orgulho. E todo o seu
texto comprova isso. Discordo sutilmente apenas quando Montero critica mulheres
que estudam a produção literária feminina como “cultura feminina”, que pode não
ser um conceito universal, mas existe. A própria autora reconhece isso quando
lembra que muitas obras antigas anônimas possivelmente têm por traz uma escritora
que não podia se revelar (outras usaram pseudônimos masculinos) e afirma que “a
mulher criadora foi levada a mimetizar o olhar masculino”. Oras, se há um olhar
masculino, também há um feminino. E Rosa parece saber muito bem disso, ao
divagar que, se homens menstruassem, a literatura “estaria cheia de metáforas
do sangue”, que estão à espera de serem criadas pelas escritoras finalmente
libertas.
Um dos capítulos mais saborosos, porém, trata das
mulheres de escritores, no qual é impossível não lembrar de Glenn Close, no
filme A Esposa. Coadjuvantes que faziam
tudo por seus reconhecidos maridos, na maior parte das vezes, acabaram com má
fama. Entre os exemplos, Mercedes, mulher de Garcia Márquez, conhecida como “a
leoa que o guarda”. Ou Fanny Vandegrift, mulher de Robert Louis Stevenson (autor
de A ilha do tesouro e O médico e o monstro), cuja reputação
era de “velha bruxa”. No entanto, além de cuidar de sua carreira, sabe-se que
reescreveu suas obras mais famosas. Quando viúva, casou-se, aos 23 anos, com
“um rapaz esperto e bonito de 23 anos”, com o qual viveu por onze anos até sua
morte. Ou seja, ser chamada de bruxa tem mais a ver com o machismo histórico
contra a mulher.
O exemplo mais saboroso, porém, é o de Sonia Tolstoi que,
segundo Montero, aguentou por 48 anos o “energúmeno” do Leon Tolstoi, passando
a limpo todos os seus escritos e convivendo com suas depressões e delírios, que
o transformaram em guru que pregava a abstinência sexual e a pobreza absoluta,
sem deixar de engravidar a mulher ou abrir mão da vida confortável em sua
fazenda. No entanto, a fama de maluca ficou com Sonia, que reclamava que o
marido só dava ouvidos a Tchertkov, um jovem com quem, ao que tudo indica, teve
um relacionamento, no mínimo, platônico. Com a morte do escritor, Sonia “deixou
de ser louca”, administrou a fazenda da família, escreveu suas memórias e ainda
processou Tcheftkov para recuperar a propriedade dos papéis de Tolstoi – e ganhou.
Mas esse é apenas um dos recortes do livro, que discute
fundamentalmente o processo de criação do escritor, seus medos, vaidades,
compulsões, criatividade e contradições. Sobre estas últimas, Rosa lembra que
Zola, que me deixou com febre quando li Germinal
pela crueza de sua denúncia ao capitalismo, se recusou a assinar um manifesto
de apoio a Oscar Wilde, condenado a dois anos de cadeia só por ser homossexual.
Ou Victor Klemperer, judeu alemão célebre pela sua
reflexão sobre a linguagem do Terceiro Reich de Hitler, do qual foi vítima,
mostrando como “as palavras, quando mentem lambuzadas de sentimentalismo, podem
ser letais como as balas de um assassino”, tornando todos os totalitarismos
parecidos, também escreveu, antes da guerra: "uma civilização tão clara e
tão grande não encontrei na Espanha em lugar nenhum. Aqui na Itália, o
Renascimento continua vivo, aqui ele está livre de qualquer mistura africana.
Aqui reina o fascismo? E o que importa isso? A Itália é um país de cultura, é o
berço da cultura europeia e essa cultura vive; a Espanha, pelo contrário, pouco
tem a ver com a Europa”. Ou seja, se não tivesse vivido na pele os horrores do
nazismo, será que teria se preocupado em denunciar seus horrores?
Com muita leveza, a autora nos mostra que os escritores
não precisam ser coerentes, e na maior parte das vezes não o são, já que o
pensamento racional e a consciência do eu destroçam a criatividade. Para ela,
ser um romancista é não ter medo de visitar todos os mundos possíveis e alguns
impossíveis. Não são, também, confiáveis, por isso acredita ser impossível uma
autobiografia sincera. “Alguns escritores não parecem ver com muita clareza as
diferenças que há entre as mentiras dos romances e as mentiras que contam em
suas vidas reais”, diz a escritora que nos deixa mortos de curiosidade ao colocar
em dúvida todas as lembranças compartilhadas pela louca da casa.
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