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O paradoxo das motos em São Paulo


Se existe um tema sem solução fácil é a proliferação de motos em São Paulo. O novo capítulo sobre o imbróglio é a implantação pelos aplicativos de transporte de mototáxis à revelia da proibição municipal. A modalidade foi disponibilizada, com enorme sucesso entre os usuários, nas áreas fora do centro expandido, ou seja, nas áreas periféricas, onde o sistema de transporte é mais precário.

Desde que ouvi a notícia fiquei me perguntando o que poderia dizer para uma pessoa que leva horas para ir e vir de qualquer lugar, em um trânsito caótico, dentro de ônibus, metrô e trem lotados e caros, que a convença de que a opção de ganhar um tempo precioso a um custo mais barato é uma má escolha. Sob o ponto de vista de segurança, será que caminhar o equivalente a dois a três pontos de ônibus à noite na volta do trabalho é mais seguro do que na garupa de uma moto? E pegar um ônibus, que pode demorar bastante pelo mesmo preço da moto, é vantajoso?

O tema é difícil para o cidadão, ainda mais que seu bem-estar não está em discussão entre as partes dessa briga de foice. Os aplicativos querem lucrar e o prefeito (não se iludam) está preocupado com a concorrência para os ônibus, não com a segurança da população. Caso contrário, Ricardo Nunes não esperaria quatro anos à frente da prefeitura para se dar conta que as motos são um perigo fora de controle. 

Os acidentes e mortes de motoqueiros só fazem crescer nos últimos anos e seus condutores parecem ter sido liberados totalmente de seguir normas mínimas de trânsito: parar em semáforos vermelhos, não entrar na contramão ou fazer conversões proibidas, não ultrapassar pela direita, dar prioridade aos pedestres e toda a lista de regras do Detran. Sob a desculpa de que motoboys precisam trabalhar e que a cidade pararia sem os entregadores, autoridades se abstêm de fiscalizar e a população já entregou pra deus. Por que tanto escândalo por causa dos mototáxis?

Quer dizer que sou a favor deste tipo de transporte? Absolutamente não. Individualmente, pode ser interessante para o usuário, desde que assuma os riscos de um veículo cujo para-choque é seu próprio corpo. O problema é que a implantação de mototáxis tende a aumentar o número de motos na cidade, sem diminuir o número de automóveis, o que significa que deve crescer, sim, a quantidade de acidentes. 

Com isso, há vários impactos coletivos a serem considerados - a sobrecarga do sistema de saúde é o mais óbvio. Cada acidente de moto, porém, provoca congestionamento, prejudicando todo mundo que está circulando em ônibus e automóveis, diminuindo a qualidade de vida de seus usuários. E a poluição já excessiva da cidade.

Ou seja, mototáxis não melhoram o trânsito e aumentam as emissões na cidade, com consequências para a saúde e para as mudanças climáticas. Mais uma vez, o interesse privado das empresas e dos usuários, mesmo que justificado neste último caso, é colocado em primeiro lugar em detrimento da coletividade. Ao invés de brigar com os aplicativos de transporte, o prefeito poderia investir esforços em criar alternativas reais para as motos: sistema de transporte barato, quiçá gratuito, além de seguro e sustentável. E fiscalizar se as motos cumprem as leis de trânsito mais do que se carregam alguém na garupa.  

 

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