Pular para o conteúdo principal

Com vontade política, país pode gerir bem suas áreas protegidas

 

O calor fora de época e de bitola dificultam a vontade de escrever ou fazer qualquer coisa. Quem sabe os cientistas estejam todos errados e as altas temperaturas sejam apenas um ponto fora da curva, como pregam os negacionistas. Ou sempre fez calor assim, nós que esquecemos ou os termômetros foram finalmente calibrados.

Mesmo de brincadeira, acho difícil pensar em asneiras como essas. Imagino o que passa pela cabeça de mitômanos como o fulano que enviou discurso em nome do Brasil quarta-feira (30/9) à cúpula sobre biodiversidade da ONU e voltou a dizer que as ONGs comandam crimes ambientais e que seu governo está combatendo o desmatamento, sem provas ou mínimas evidências.

O mais triste é que assistimos ao vivo um filme de terror que poderia ser muito diferente caso não fosse dirigido por vilões tão caricatos. Ao contrário do que apregoam os responsáveis pelo circo de horrores que nos tornamos, o país tem uma sociedade civil, boa parte dela organizadas em ONGs, altamente empenhada em colaborar com governos e entre si para resolver nossos problemas estruturais. E tem muita coisa para mostrar.

Uma delas, muito representativa, por sua importância para nossa segurança climática, é o Programa Arpa – Áreas Protegidas da Amazônia -, a maior iniciativa de conservação de florestas do mundo. Lançado em 2003 pelo governo brasileiro e coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, é gerido financeiramente pelo Funbio – Fundo Brasileiro para a Biodiversidade, uma associação civil sem fins lucrativos, a partir de doadores internacionais e nacionais.

O Arpa foi responsável, entre 2005 e 2015, pela criação de 276 mil km2 de unidades de conservação (UC) e o apoio à consolidação de 590 mil km2. A consolidação de uma unidade de conservação significa dotá-la dos instrumentos necessários à sua gestão (plano de manejo, conselho, plano de proteção, infraestrutura – equipamentos e instalações, sistema de monitoramento) e garantir a realização de atividades que assegurem o alcance dos seus objetivos.

Um estudo do WWF-Brasil, O Impacto do Programa Arpa na Efetividade de Gestão das Unidades de Conservação da Amazônia, de 2017, mostrou que o financiamento contínuo e de longo prazo, como é o caso do Arpa, foi fundamental para aumentar a consolidação das UC. A pesquisa mapeou muitos bons exemplos de gestão e programas em unidades de conservação, com resultados concretos da capacidade do país de manter e implementar suas áreas protegidas. Tudo isso, é claro, fica muito mais difícil com o próprio governo federal, que deveria estar liderando as boas iniciativas, jogando abertamente contra.

Um exemplo de programa que vinha tendo bons resultados foi a implantação da técnica de manejo integrado do fogo pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio), em parceria com diversas instituições e ONGs, que permitiu a redução de 40% na área atingida por incêndios entre 2010 e 2017 em unidades de conservação federais. Entre as UC beneficiadas estavam a Estação Ecológica da Serra Geral do Tocantins, a Reserva Extrativista Chapada Limpa e os parques nacionais da Chapada dos Veadeiros, do Itatiaia, Lagoa do Peixe, do Araguaia e da Serra da Canastra. A técnica busca o uso sustentável do fogo, seja para produção agrícola com as queimas controladas, seja para a conservação ambiental com as queimas prescritas em fitofisinomias savânicas, sob condições em que o fogo pode ser facilmente controlado.

Outra iniciativa mapeada é voltada para sensibilização e fiscalização de manguezais. Construção civil, lenha destinada a olarias e implantação de curral (tipo de pesca artesanal) trouxeram degradação para o manguezal da Área de Proteção Ambiental Guapimirim, na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. A partir da criação da unidade de conservação, em 1984, trabalhos de sensibilização ambiental e posteriormente de fiscalização foram eficazes na recuperação de vários fragmentos. Em outras áreas, termos de ajustamento de conduta propiciaram a recuperação. Aproximadamente 100 hectares de áreas degradadas de mangue foram recuperados, com registro de reocupação da fauna local. Catadores de caranguejo do entorno não precisam mais viajar para outros estados brasileiros em busca de manguezais nos quais trabalhar.

O projeto A Floresta é Nossa, realizado pela Floresta Nacional de Brasília, na região de Taguatinga/DF, promoveu o envolvimento do público em ações capazes de melhorar a experiência de visitação na área protegida. Com isso, houve uma mobilização de ciclistas, que se apropriaram da UC, respondendo ao movimento que partiu da equipe gestora. As ações foram decididas em conjunto e os ciclistas entraram com mão-de-obra e investimentos. Sete trilhas para ciclistas foram sinalizadas para diversos perfis, com melhoria de duas pontes. Além disso, foram criadas trilhas para caminhadas com diferentes níveis de dificuldade. O número de visitantes triplicou, passando de 11 mil, em 2014, para 33 mil, em 2017.

Outros exemplos estão no volume Como gerir e maximizaros benefícios dessas áreas?, do pacote informativo lançado pelo WWF-Brasil neste ano, o qual ajudei a produzir e tenho mostrado no blog paulistanasp. O material explica, de forma didática e ilustrativa, a importância das unidades de conservação e os principais riscos que enfrentam. São cinco volumes, voltados prioritariamente para professores.

(Foto: Arara-canindé, no Parque Nacional do Juruena - WWF-Brasil/Zig Kock)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Clubes de leitura: revoluções individuais a partir dos livros

Quem me conhece sabe da importância que participar de um clube de leitura tem na minha vida. Especial para mim e para as demais membras, o Círculo Feminino de Leitura-CFL, ao invés de se tornar rotina, foi ganhando maior espaço em nossas vidas ao longo do tempo e transfomou nossa maneira de ver o mundo. Por isso, ao receber da Nivia, uma de minhas companheiras de CFL, uma foto do livro Clubes de Leitura – Uma aposta nas pequenas revoluções (Solisluna Editora), de Janine Durand e Luciana Gerbovic, fiquei com coceira nos olhos e fui correndo comprar. As autoras escrevem a partir de suas experiências de mediadoras de clubes de leitura e abordam o potencial da literatura como caminho para libertação pessoal. Advocam que a literatura é um Direito Humano, mas pouco respeitado no Brasil. As duas são articuladoras do Programa Remição em Rede, que fomenta clubes de leitura em unidades prisionais para remição da pena por meio da leitura. Trazem depoimentos tocantes de pessoas transformadas pelo...

Calorão no inverno parece bom, mas não é

Lembro de acordar e sentir cheiro de orvalho, encontrar o chão do quintal e as calçadas molhadas de manhãzinha. Era assim todos os dias em São Paulo. E lembro de como odiava os dias garoentos do outono e o frio no meu aniversário, no final de julho. E de reclamar durante agosto inteiro de me levantar cedo para ir para a escola. Detestava ter que me agasalhar demais, às vezes com toca e luvas, e ainda me sentir gelada. Mas tudo isso foi há muito tempo, quando eu era criança. Já na faculdade de Geografia, aprendi com a professora Magda Lombardo o que eram as ilhas de calor e como a urbanização levou embora o orvalho e a garoa da cidade, aumentando sua temperatura. Nada que se compare, porém, com este inverno atípico que assistimos agora, sem saber se ele é apenas excepcional ou o novo normal. A questão é que, para a maior parte das pessoas, que gostam de sol e calor, este tem sido um inverno bom, e estou entre elas. É delicioso não precisar usar casacões, poder dormir, no máximo, com...

80% da água doce da Terra está na Antártica

  De todos os locais que gostaria de conhecer, mas duvido que consiga, a Antártica está no topo da lista. É muito longe, é muito caro, é muito frio. Mas é fascinante. Estou aqui embevecida com o livro Expedições Antárticas, do fotógrafo e biólogo Cesar Rodrigo dos Santos, que teve o privilégio de estar 15 vezes por lá, entre 2002 e 2017, e registrar imagens de tirar o fôlego. O livro ainda tem com o plus dos textos serem da minha amiga Silvia Marcuzzo, que conta as aventuras de Cesar, e nos traz detalhes da infraestrutura e o trabalho desenvolvido pelo Brasil no continente gelado, da geografia e da biodiversidade locais, assim como os desafios do último lugar remoto do planeta. É uma região sobre a qual tudo o que sabemos, normalmente, se resume às suas paisagens de horizontes brancos infinitos e pinguins amontoados. Mas é um território a ser muito estudado, até porque as mudanças climáticas podem modificar rapidamente o que conhecemos até agora: “O continente antártico é reple...