Me programei para escrever nesta semana sobre áreas
protegidas, um tema que acompanho há tanto tempo e mais um dos que só trazem
péssimas novidades. Queria comentar o desespero que são as queimadas e o
desmatamento sem precedentes que tomaram conta do país e as desventuras em São
Paulo, com toda a mobilização que a sociedade civil foi obrigada a fazer para
evitar que a Fundação Florestal fosse extinta. Também pretendia ser leve e
abordar a importância dessas áreas para nossa vida, inclusive como refúgio que
espero se tornem para humanos terem momentos de lazer e um pouco de liberdade
pós-pandemia.
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Eu e minhas filhas, quando tinham dez anos, apenas brincando, que é o que meninas de dez anos fazem. |
Mas isso fica para uma próxima oportunidade, porque desde o
fim-de-semana só consigo pensar no horror supremo do caso da menina de dez anos
estuprada, engravidada e perseguida pela horda de cristandade que, em suas
várias versões, submete corações, mentes, fé e política no Brasil desde que os
europeus aqui chegaram. Pensamento dominante este que só causa ódio às mulheres
e faz com que mais da metade da população viva aterrorizada, com medo de sair
às ruas e medo de ficar em casa. Que induz meninas e mulheres a se sentir
culpadas por existirem ou pelas inúmeras violências que são obrigadas a sofrer
ao longo da vida.
O aborto é um tema tão tabu nesta sociedade que é empurrado
para baixo do tapete inclusive por políticos que sabidamente são a favor dele,
intimidados pelo poder das igrejas e pelos votos que seu atraso induz. Que
forças fazem as mulheres se calarem e deixarem de exigir a legalização de uma
prática a qual boa parte delas vai passar pelo menos uma vez na vida (minha experiência
empírica mostra que quase metade, sem contar as que não têm coragem de contar)
e que mata pelo menos uma de nós a cada dois dias? Como podem existir mulheres
sórdidas como Damares e essa Sara Giromini, que se intitula inverno?
Por que controlar os corpos femininos é tão importante para
os homens? Será para ter a garantia do silêncio quando as obrigam a abortar?
Esse caso da menininha do Espírito Santo fez chacoalhar
esse tapete e é tanta sujeira despejada no ar que tem me sufocado e tirado o
sono (felizmente não apenas o meu). Nos fez lembrar que são realizados no país
seis abortos por dia em meninas de até 14 anos vítimas de estupro, que quatro
meninas de até 13 anos são estupradas por hora no Brasil, onde foram
registradas 642 internações por esse motivo apenas neste fatídico 2020, e são
realizados 26 mil partos anualmente de mães entre 10 (DEZ!!!!!) a 14 anos. Quem
lê isso e não tem vontade de vomitar precisa de tratamento.
Me pergunto quem são os homens que cometem essas
atrocidades. Não podem ser exceções pela quantidade (os dados acima são apenas
os oficiais). De que tamanho precisa ser a misoginia normalizada e incrustada
no inconsciente coletivo masculino para que pais, avôs, tios, irmãos, primos,
padrastos, amigos íntimos das famílias se sintam à vontade para abusar de
meninas das quais são responsáveis por cuidar e deveriam amar? O que pensam
quando se olham no espelho?
Me vejo pensando nos homens que conheci durante a minha
vida. Quais deles seriam capazes desses atos ou foram às vias de fato?
Impossível não fazer perguntas como essa diante da realidade. Como mãe,
confesso que o fato de minhas filhas serem gêmeas e inseparáveis sempre foi um
fator tranquilizador quando não estavam sob meus olhos. Lembro desse pensamento
quando saíam para brincar no clube, em festinhas ou em qualquer outro lugar.
O que mais me choca, porém, é a postura religiosa, que se
arvora de defender a vida, mas despreza as mulheres. A declaração da
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de que o abordo realizado na
menina - não custa repetir muitas vezes, de 10 anos estuprada por quatro anos
pelo tio - foi um crime hediondo é tão revoltante, que escrevo tremendo. É por
essas e outras que me excomunguei da igreja católica, na qual fui criada, há
mais de 30 anos.
Que adianta ter um papa bacaninha, em um clubinho onde
mulheres não podem chefiar nem míseras paróquias e pedófilos são encobertos e
perdoados aos borbotões? Uma das séries documentais que vi nesta quarentena foi
The Keepers,
sobre casos reais de padres pedófilos, tão ilustrativa sobre a questão quanto o
mais conhecido filme Spotlight (Segredos Revelados). O
documentário parece uma ficção de horror e nos faz assistir roendo as unhas.
Recomendo muito. Ambos, documentário e filme, se passam nos Estados Unidos, mas
duvido que seja diferente por aqui.
Sem contar o espetáculo macabro dos cristãos vociferando na
porta do hospital em Recife contra o médico e a vítima, o próprio fato da
menina ter que ir a outro estado para ser atendida é outra aberração difícil de
aceitar. Que tipo de gente são esses médicos que escolhem ser hipócritas e não
acabar com o sofrimento de uma criança a seguir o juramento de Hipócrates? Será
excesso de cloroquina preventiva afetando os neurônios ou a compaixão?
Enfim, diante da realidade tão nefasta, me vejo como o Luís
Fernando Veríssimo em sua última coluna no Estadão (Florescendo).
Assim como o escritor não conseguiu falar apenas das cerejeiras do jardim pela
imposição dos mais de 100 mil mortos pela covid-19, também eu não consigo
pensar em nada bom, leve e bonito com mais essa barbárie jogada nas nossas
costas já tão sobrecarregadas.
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