Parece incrível, mas somente neste ano tomei conhecimento
da existência da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida. Um dos autores
mais lidos em sua época – final do século XIX e início do XX -, ela foi apagada
do quadro dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), após ser
anunciada como uma das participantes, e também, até bem pouco tempo, da
história da literatura no país. Me pergunto quantas mais mulheres tiveram suas
obras e atuações nas mais diversas áreas esquecidas, propositalmente, apenas
por serem do sexo feminino.
Instigada por conhecer mais sobre Júlia, cujo marido - o poeta
português, dizem que medíocre, Filinto de Almeida - assumiu a cadeira que seria
dela e era chamado nas rodas intelectuais de imortal consorte, indiquei seu
livro A Falência para o encontro
mensal do Círculo Feminino de Leitura (CFL), que aconteceu na minha casa em
julho. E ela não decepcionou.
Mulherada pirando com Júlia de Almeida. |
Publicado originalmente em 1901, o romance é um retrato
realista da sociedade brasileira logo após a abolição dos escravos e
proclamação da república - sobretudo de sua elite econômica. Infelizmente, o
livro é também bem atual. Conta a história da família do imigrante português
Francisco Theodoro, que enriqueceu com o comércio do café, mas acaba falido por
ter caído na lábia de um especulador. A questão do livro, porém, não é
exatamente essa e sim as relações entre as pessoas, a começar pela
protagonista, esposa do empresário e amante de um médico refinado que
praticamente faz parte da família.
O que diferencia o olhar de Julia é não ter a visão
idealizada ou misógina da mulher. Ao contrário de Capitu, a personagem símbolo
de Machado de Assis, seu contemporâneo – e possivelmente um dos censores de sua
entrada na ABL –, sua Camila não é dissimulada nem punida pelo autor por conta
apenas de suspeitas. É uma mulher do seu tempo, que casa por interesse, por ser
a única alternativa possível de ascensão para uma mulher pobre, bonita e
inteligente. Corresponde totalmente ao que espera dela o marido, a quem dedica
um afeto verdadeiro, apesar do descrédito da sociedade, sobretudo quando da
falência e posterior suicídio do esposo.
Aliás, é nesse momento de tragédia, que os aparentes
sentimentalismo e superficialidade que rondam o mundo feminino, cercado de
receitas, moda, fofocas e recepções, dá lugar a força e determinação, ao
contrário da fraqueza de caráter e covardia dos personagens masculinos. Enquanto
o filho mimado se casa com uma ricaça, deixando a mãe e as irmãs se virarem, o
pai se mata por vergonha, largando a família na mão, e o amante confessa que
não pode se casar por ter abandonado uma esposa à mingua por suspeita de
traição, as mulheres dão a volta por cima e vão à luta: desde a empregada –
típica “criada da casa”, quase escrava, mas “da família” -, à sobrinha
agregada, à filha mocinha que vai dar aulas de música, até a madame, que assume
a educação das filhas pequenas e as rédeas da família e manda o amante cínico
passear - nenhuma fica de mimimi. No CFL, amamos todas elas.
Escrito em um tom realista, mas sem abrir mão de uma
linguagem poética e lúdica, o livro nos permite viajar no tempo, inclusive nas
palavras que já não conhecemos o sentido e precisam de saborosas notas de
rodapé explicativas. Fiz um quiz com
parte delas e nos divertimos tentando adivinhar o que queriam dizer fora do
contexto do livro.
Mas a autora também nos faz pensar em quão pouco (e se)
avançamos nesses pouco mais de cem anos de república, como nas meditações de
Francisco Theodoro, o homem “de bem”, após ser abatido pela ganância e ambição:
“No
fim, havia de aparecer a justiça punindo as ambições e as vaidades destes
tempos e destes homens doidos, quando, depois de tudo consumado, não houvesse
nada a refazer, mas tudo a criar.
A
pulsação do seu sangue alvoroçado dava-lhe a percepção fantástica de que o
Brasil seria arrastado vertiginosamente pela maldade de uns, a ignorância de
outros e a ambição de todos, em voragens abertas pela política amaldiçoada”.
Já a beira da decisão irrefutável de tirar a própria
vida, o empresário falido reconhece a importância dos valores que sempre
desprezou (ah se ele pudesse deixar esse legado aos seus semelhantes porvindouros):
“Era pois também certo que a inteligência
e a instrução valiam alguma coisa”.
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