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Mineração, consumo e estupro


Fazer sinapses é uma atividade difícil, às vezes, parece que tentamos forçar a barra ou, mais comum, sermos muito radicais. Ontem, no meio desta semana triste, quando a Amazônia arde por obra de ruralistas, madeireiros e mineradores – e, com certeza, não por iniciativa de ONGs, como quer convencer a galera o presidente do Brasil -, ouvi o médico congolês Denis Mukwege, Prêmio Nobel da Paz de 2018, no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento.
Denis Mukwege, no Fronteiras do Pensamento

Mukwege ficou conhecido por sua atuação em prol das mulheres que são estupradas como estratégia de guerra nos conflitos que já deixaram mais de 6 milhões de mortos na República Democrática do Congo (RPC). Segundo o médico, os estupros coletivos, cometidos de maneiras diversas conforme o grupo, são uma forma barata de humilhar e destruir comunidades, forçando seus habitantes a deixar suas terras. O motivo da violência é o controle sobre as minas de tantalina, minério utilizado na maioria dos aparelhos eletrônicos portáteis, do qual o país detém 80% das reservas mundiais.
Não é preciso ser gênio para concluir que, a cada vez que compramos um novo celular ou notebook, estamos sendo cúmplices desses estupros. Para quem gosta de trocar de aparelho como quem troca de roupa, a cada vez que a câmara fotográfica aumenta um pixel, a culpa é maior (pode me xingar, mas é verdade). Infelizmente, as mineradoras usam táticas tão ignóbeis quanto aqui no Brasil, seja colocando a população em risco com suas barragens mal feitas, seja cooptando os dirigentes do país e incentivando a invasão de terras indígenas para tomar posse de seu subsolo. Se isso acontece às custas de vidas indígenas e das florestas brasileiras, não é uma questão que parece ganhar corações de mentes. Aliás, em se tratando de Amazônia, precisamos saber que também o nosso bifinho de cada dia colabora, e muito, para as cenas deprimentes de fogo na mata que temos visto na TV e também da janela de nossas casas aqui no sul-sudeste, nas chuvas engrossadas pela fumaça que veio do norte.
Essas sinapses são desagradáveis, mas necessárias se – e somente se – quisermos mudar essa inversão de valores que tomou conta da humanidade e que banaliza o mal, como disse o Prêmio Nobel à plateia que foi vê-lo aqui em São Paulo. Mukwege decidiu ser médico para combater a mortalidade infantil em seu país, mas descobriu que a mortalidade materna era uma tragédia ainda maior, com mulheres já chegando quase mortas ao hospital. Diante disso, resolveu ir para a França e se especializar em ginecologia.
Na volta, o hospital onde trabalhava em Lemera, no leste do país, foi atacado e 35 pacientes mortos. Fugiu para Bukadu onde fundou, em 1999, o Hospital de Panzi. A ideia era atuar na saúde da mulher, realizar partos, mas a primeira paciente que apareceu foi uma vítima de estupro, com extrema violência. Contou que, apesar do choque, acreditou que fosse um caso isolado, mas as vítimas não pararam mais de chegar. São dez casos, em média, por dia, incluindo bebês com meses de vida a senhoras octagenárias.  
“O corpo da mulher virou uma arma de guerra para destruir as comunidades, uma arma largamente utilizada em vários lugares do mundo, como Colômbia, Iraque, Sudão do Sul, Síria”, disse. Por seu trabalho e suas críticas às grandes empresas mineradoras – “que sabem que esses são minerais de sangue, obtidos pelo martírio das mulheres e a destruição de seus órgãos genitais” -, Mukwege já foi alvo de seis atentados. Em um deles, em sua casa, em 2012, seu segurança foi morto e ele resolveu se refugiar no exterior. No entanto, logo voltou ao país, por conta do apelo das mulheres a quem tinha ajudado, que juntaram dinheiro para a passagem de volta vendendo frutas e verduras.
As maiores críticas, o médico reserva à comunidade internacional, que faz vistas grossas para o que acontece na República Democrática do Congo por interesses econômicos. Segundo ele, somente a igualdade de gênero fará com que as mulheres tenham dignidade e paz. Para tanto, é preciso que seja uma campanha global e que esses crimes sejam punidos, inclusive como crimes de guerra.
“As mulheres não podem combater esse mal sozinhas como têm feito até agora. É hora dos homens se tornarem aliados-chave para a igualdade entre os sexos. Não podemos enfrentar os desafios da humanidade – pobreza, desigualdade, clima – sem a presença igualitária das mulheres. Não há mais lugar para o modelo da masculinidade patriarcal”, disse Mukwege. E exortou: "Um mundo 50/50 é possível e está ao nosso alcance. A dominação de 50% não vai garantir nossa sobrevivência”.  

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