Pular para o conteúdo principal

Jovens ainda estão com pouca raiva

Greve dos estudantes pelo clima.

Convidada a falar sobre mudança do clima e o governo Bolsonaro para alunos da Fundação Getulio Vargas nesta semana, me vi pensando que o Brasil nunca foi um país que desse muita importância para as questões ambientais, mas, aos trancos e barrancos, seguíamos em frente. Mesmo nos governos Dilma e Temer, nos quais o Ministério do Meio Ambiente (MMA) voltou a ser um tanto café com leite e houve retrocessos, havia diálogo e decoro em relação ao tema, com ministros e equipe realmente comprometidos. A diferença é que agora não contamos nem com as aparências, como bem mostrou o editorial da Folha de S. Paulo de ontem (Neurose ambiental, 25/3) e, pior, a resposta do “ministro do Meio Ambiente” (entre aspas mesmo, pois não o considero digno do cargo) Ricardo Salles, no Twitter (óbvio), dizendo que trata-se de “estratégia da esquerda militante”.
Ver o governo federal tentar ligar uma área tão crucial à sobrevivência humana à uma questão ideológica com tanta vulgaridade me deixa desalentada. Ainda mais porque as evidências não batem mais à porta, mas entraram e estão mostrando a que vieram. As últimas notícias mostram que a temperatura média global ultrapassou 1º C em relação à era pré-industrial – após 1,5º C, a segurança climática, segundo o IPCC, estará muito mais ameaçada. Nove dos dez anos mais quentes registrados aconteceram desde 2005; 2018 foi o quarto ano mais quentes da história (perdeu para 2015, 2016 e 2017).
Quem passou o último verão no Centro-Sul do Brasil, pôde sentir na pele as temperaturas até 9°C mais altas que a média histórica para o mês. Florianópolis teve a maior temperatura máxima já medida, 40°C (3 de janeiro), Rio de Janeiro teve o janeiro mais quente desde o início
das medições, com 37,4°C de máxima média mensal, e Brasília teve seu terceiro janeiro mais seco de todos os tempos (perdeu para 1972 e 1999).
Saindo no nosso mundinho, vimos ainda que as temperaturas na Austrália beiraram os 50º C e acompanhamos horrorizados o que o ciclone Idai causou em Moçambique e países vizinhos.
No outro extremo, o meio-oeste estadunidense teve temperaturas de – 32º C, com sensação térmica de – 60º C, neste janeiro. Mas o que o frio tem a ver com o aquecimento global? Como o Ártico vem esquentando duas vezes mais rápido do que o resto do planeta no último século, o gelo marinho e a neve da Sibéria vêm recuando. Com isso, os ventos ficam mais lentos e o imenso “rio aéreo” formado por eles fica mais denso. Resultado: massa polar escapulindo para América do Norte, Europa e Rússia.
Enquanto isso, vemos o presidente do Estados Unidos, Donald Trump, desdenhando o que está na cara, e seu discípulo aqui no Brasil, Jair Bolsonaro, dizendo amém. Isso é muito inquietante, porque medidas essenciais estão sendo adiadas e nossa janela de oportunidade para reagirmos à mudança do clima vai se fechando.
O novo presidente do Brasil prometeu em campanha um enorme desmonte na área ambiental e tem cumprido com galhardia. A Medida Provisória 870/2019 e os decretos que reorganizaram estrutura do governo reduziu drasticamente as competências do Ministério do Meio Ambiente:
ü  Combate ao desmatamento não está na lista de atribuições do MMA;
ü  Praticamente extinguiu referências ao combate às mudanças climáticas na estrutura do MMA.
ü  Secretaria de Mudança do Clima e Floresta deixou de existir.
ü  Agência Nacional de Águas (ANA) passou para o Ministério do Desenvolvimento Regional.
ü  Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e Cadastro Ambiental Rural (CAR) passaram para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
ü  Na estrutura do MMA, ficou apenas o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima.
Além disso,
ü  Mapa também passou a ser responsável pela oficialização de terras indígenas e quilombolas e outros temas fundiários, como a reforma agrária e regularização fundiária na Amazônia Legal e nos territórios tradicionais.
ü  Itamaraty deixou de ter a Subsecretaria de Meio Ambiente, Energia, Ciência e Tecnologia e suas divisões de Clima, de Recursos Energéticos Novos e Renováveis e de Desenvolvimento Sustentável. A área ambiental passou para um departamento de uma nova secretaria de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania.
ü  Não se sabe quem vai conduzir a política nacional e as negociações internacionais sobre mudança do clima, que eram competências do MMA e do Itamaraty.
Essas medidas terão um impacto enorme em questões cruciais para o país. Em janeiro de 2019, a Amazônia Legal perdeu 108 km² de florestas, um aumento de 54% em comparação ao mesmo período do ano anterior segundo os dados divulgados pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), parte disso já consequência da sinalização federal de que combater desmatamento não será prioridade. Só que a Amazônia atingiu 19% de sua área desmatada, enquanto estudos apontam 20% a 25% como ponto de não retorno, aquele em que a deterioração da floresta e a mudança climática na região será irreversível. Por isso, conter o desmatamento é o principal compromisso do Brasil com a Convenção do Clima em sua NDC (metas de redução de emissões de cada país). Sem contar os eventos extremos e suas consequências sociais e econômicas em todo o país...
Além dos pobres – sempre as maiores vítimas em qualquer situação em qualquer lugar do mundo -, os maiores prejudicados com a negação da mudança climática são os jovens, para quem vai sobrar dar um jeito (o que for possível) no problema. A Greve Escolar pelo Clima, movimento liderado pela estudante sueca Greta Thumberg, de 16 anos, que mobilizou, no último dia 15 de março, mais de 1 milhão de crianças e jovens em 120 países para pressionar líderes políticos e empresariais a agirem, para que a mudança do clima não ameace o seus futuro foi um alento. No Brasil, houve manifestação em 18 locais, uma tímida fagulhazinha.
Na ocasião, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que a atual geração que comanda o mundo não conseguiu responder adequadamente ao desafio dramático das mudanças climáticas. “Isso é profundamente sentido pelos jovens. Não admira que estejam com raiva”, disse. Concordo com ele, mas acho que a raiva ainda está pouca.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Clubes de leitura: revoluções individuais a partir dos livros

Quem me conhece sabe da importância que participar de um clube de leitura tem na minha vida. Especial para mim e para as demais membras, o Círculo Feminino de Leitura-CFL, ao invés de se tornar rotina, foi ganhando maior espaço em nossas vidas ao longo do tempo e transfomou nossa maneira de ver o mundo. Por isso, ao receber da Nivia, uma de minhas companheiras de CFL, uma foto do livro Clubes de Leitura – Uma aposta nas pequenas revoluções (Solisluna Editora), de Janine Durand e Luciana Gerbovic, fiquei com coceira nos olhos e fui correndo comprar. As autoras escrevem a partir de suas experiências de mediadoras de clubes de leitura e abordam o potencial da literatura como caminho para libertação pessoal. Advocam que a literatura é um Direito Humano, mas pouco respeitado no Brasil. As duas são articuladoras do Programa Remição em Rede, que fomenta clubes de leitura em unidades prisionais para remição da pena por meio da leitura. Trazem depoimentos tocantes de pessoas transformadas pelo...

Calorão no inverno parece bom, mas não é

Lembro de acordar e sentir cheiro de orvalho, encontrar o chão do quintal e as calçadas molhadas de manhãzinha. Era assim todos os dias em São Paulo. E lembro de como odiava os dias garoentos do outono e o frio no meu aniversário, no final de julho. E de reclamar durante agosto inteiro de me levantar cedo para ir para a escola. Detestava ter que me agasalhar demais, às vezes com toca e luvas, e ainda me sentir gelada. Mas tudo isso foi há muito tempo, quando eu era criança. Já na faculdade de Geografia, aprendi com a professora Magda Lombardo o que eram as ilhas de calor e como a urbanização levou embora o orvalho e a garoa da cidade, aumentando sua temperatura. Nada que se compare, porém, com este inverno atípico que assistimos agora, sem saber se ele é apenas excepcional ou o novo normal. A questão é que, para a maior parte das pessoas, que gostam de sol e calor, este tem sido um inverno bom, e estou entre elas. É delicioso não precisar usar casacões, poder dormir, no máximo, com...

80% da água doce da Terra está na Antártica

  De todos os locais que gostaria de conhecer, mas duvido que consiga, a Antártica está no topo da lista. É muito longe, é muito caro, é muito frio. Mas é fascinante. Estou aqui embevecida com o livro Expedições Antárticas, do fotógrafo e biólogo Cesar Rodrigo dos Santos, que teve o privilégio de estar 15 vezes por lá, entre 2002 e 2017, e registrar imagens de tirar o fôlego. O livro ainda tem com o plus dos textos serem da minha amiga Silvia Marcuzzo, que conta as aventuras de Cesar, e nos traz detalhes da infraestrutura e o trabalho desenvolvido pelo Brasil no continente gelado, da geografia e da biodiversidade locais, assim como os desafios do último lugar remoto do planeta. É uma região sobre a qual tudo o que sabemos, normalmente, se resume às suas paisagens de horizontes brancos infinitos e pinguins amontoados. Mas é um território a ser muito estudado, até porque as mudanças climáticas podem modificar rapidamente o que conhecemos até agora: “O continente antártico é reple...