Orquídea do jardim, para lembrar que há muita coisa boa e linda. |
Desde o final do ano passado tenho feito uma peregrinação
voltada a entender o que está acontecendo no país. Isso inclui ler muitos
artigos, ter engulhos nas redes sociais, fazer cursos e me refugiar na arte,
sobretudo exposições e literatura. Tento achar onde nos perdemos e, a cada
instante, me convenço de que nunca nos encontramos realmente, como povo, como
nação, como cidadãos. Mas já tivemos dias muito melhores.
Em mais uma dessas tentativas de busca, me inscrevi no
curso Obras Abertas: História Sincrônica
da Literatura, na Casa Guilherme de Almeida. Ontem (13/3), na primeira
aula, o escritor e professor Flávio Ricardo Vassolar, por conta do massacre na
escola de Suzano, escolheu um texto – já previsto na grade – de Amós Oz (do
livro Como curar um fanático,
Companhia das Letras, 2018).
Para Vassolar, tragédias como essa tendem a se repetir por
um fenômeno que chama de “narcisismo necrófilo”. Em uma sociedade onde todos
buscam o sucesso a qualquer custo, tendemos a nos ocupar apenas dos vencedores,
seja porque são lindos, são atletas, são ricos ou bem-sucedidos, mesmo que
apenas nas redes sociais. Mas quem está de fora dessas categorias também se
acha merecedor de seus 5 minutos de fama, nem que, para tanto, precise matar e
morrer. O narciso, assim, se torna também um fanático pela morte.
No artigo Narciso gosta de se mutilar – De ‘Crise e castigo’ a crimes sem castigo,
Vassoler assinala que “...se observamos o padrão de
comportamento dos atiradores civis, desde o massacre na Columbine
High School, no Colorado (EUA), em abril de 1999, passando pelo
massacre do Realengo, ocorrido na Escola Municipal Tasso da Silveira, na cidade
do Rio de Janeiro, em abril de 2011, até chegarmos ao mais recente caso na Parkland
High School, na Flórida (EUA), no dia 14 de fevereiro de 2018
(apenas para citarmos três entre as várias tragédias ocorridas), descobriremos
que há uma profunda fusão entre winners e losers,
vida e morte. Os atiradores escolares tendem a apresentar o perfil dos nerds que,
supostamente (e não mais do que supostamente), não se importam em ser postos em
ostracismo. (...) em alguns casos (...), o profundo ressentimento opera como um
propulsor que, no limite, pretende transformar o loser em winner,
o coadjuvante em herói, por meio de uma vingança viril que, ao mesmo tempo,
lance mão do martírio como derradeira exposição narcísica”.
Incentivados por uma cultura de violência –
que hoje parece, inclusive, ser política de Estado -, narcisos necrófilos tentem
a se tornar fanáticos – frutos de uma “inutilidade banal”, como define Vassoler,
parafraseando a “banalidade do mal” de Hannah Arendt.
Em que pese o pessimismo que a situação enseje, entre os
antídotos sugeridos para desmobilizar os fanáticos que infestam a sociedade
(travestidos não apenas de adolescentes losers,
mas de milicianos, políticos, religiosos e afins) pelo grande escritor
israelense Amós Oz, estão o humor e a curiosidade: “Fanáticos não têm sendo de
humor e raramente são curiosos. Porque o humor corrói as bases do fanatismo, e
a curiosidade agride o fanatismo ao trazer à baila o risco da aventura,
questionando, e às vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão
erradas”.
É na literatura, e na arte em geral, que Oz deposita suas
melhores apostas para instigar a curiosidade dos fanáticos – a mesma arte que
vemos atualmente (e sempre que fanáticos encontram o poder) como um dos
principais alvos de perseguição.
Sobre o humor, me vem à cabeça a fúria destilada pela
turba governista e asseclas contra o ator José de Abreu, que brinca nas redes
sociais ser “presidente autoproclamado do Brasil”. Vi também essa falta de
leveza em algumas pessoas sensatas, que pareceram levar a sério a brincadeira
ou reclamam do deboche como a dizer que o momento pede mais seriedade.
Um artigo que li no Facebook, da psicóloga Rita Almeida, abordando justamente o case José de Abreu, traz essa ideia o uso do humor como instrumento
desconstrutor com a qual tendo a concordar (embora, reconheço, com muita
dificuldade em utilizar). Para ela, “se não é
possível desmontar um delírio, é possível desconstruí-lo pouco a pouco, parte
por parte. Fazer pequenos furos, abalar algumas verdades, duvidar, perguntar,
são algumas das estratégias que utilizamos para ir minando a certeza do sujeito
delirante, fazendo-o enxergar outras possibilidades. E é muito importante que
ele encontre outras possibilidades, caso contrário, voltará para sua certeza
delirante, que ao menos lhe assegura um lugar”. A mesma ideia norteia o documentário Tá rindo de quê? (Brasil, direção Claudio Manoel, Álvaro Campos e
Alê Braga, 2018), que estava em cartaz em São Paulo até a semana passada. O filme
mostra como o humor foi usado por artistas como resistência durante a
brutalidade e truculência da ditadura militar no Brasil e como foram ameaçados
e perseguidos por isso.
Claro que uma tragédia como a de ontem em Suzano não
suscita, nem poderia, nenhuma dose de humor. Mas para evitar que ideias até
pouco tempo impensáveis, como professores armados como solução para casos como
esses, sejam sequer cogitadas, precisamos pensar cada vez mais em como garantir
que a razão prevaleça à barbárie.
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