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Vale: após os dois desastres, haverá algum aprendizado?

Bento Rodrigues, Mariana (MG)

O rompimento da barragem da Vale em Brumadinho me pegou no início da leitura do livro Tragédia em Mariana – a história do maior desastre ambiental do Brasil, da jornalista Cristina Serra, um dos melhores livros-reportagens que já li. Com uma narrativa em primeira pessoa, Cristina nos leva para dentro do horror que foi o rompimento da barragem da Samarco (empresa da mesma Vale, em sociedade paritária com a australiana BHP Billiton) junto com ela, que chegou ao local poucos dias depois do fatídico 5 de novembro de 2015 como repórter do Fantástico, da TV Globo.
Com o seu olhar humano, voltado logo de cara para as vítimas da tragédia, vamos nos comovendo com o que aconteceu. Sentimos junto com ela a compaixão pelos mortos, por seus familiares e amigos, pelos que perderam tudo o que tinham. E vamos nos indignando com a maneira como estas pessoas foram tratadas antes (não foram informadas dos riscos, não receberam instruções ou avisos) e depois da tragédia (suas casas destruídas ou deixadas ao léu para serem saqueadas, não foram indenizadas nem receberam novas casas permanentes três anos depois etc. etc. etc.).
Cristina quis que as histórias de cada um dos 19 mortos fosse contada, para que não se perdesse a dimensão humana do que aconteceu (será que a história dos mais de 300 desta nova tragédia também será contada assim?) e que os heróis que impediram que a calamidade fosse ainda maior fossem reconhecidos. Paula Geralda Alves, a funcionária de uma terceirizada da Vale que, com a lama atrás de si, vai até o vilarejo de Bento Rodrigues em sua moto para salvar a mãe e o filho e não sai de lá antes de avisar a todos os moradores, mereceria, por si só, ter um filme sobre ela.
Mais do que o impacto ambiental, cuja dimensão estamos longe de poder compreender e que nunca será sanado – o Rio Doce nunca mais será o mesmo -, são as pessoas impactadas que realmente nos fazem ver como nossas estruturas são frágeis e, no fim, os interesses empresariais tendem a prevalecer. O que pode justificar, por exemplo, que em três anos uma empresa que constrói barragens imensas e tritura montanhas inteiras vorazmente e em pouquíssimo tempo não tenha conseguido entregar as novas moradias para os que foram desalojados? Como explicar que lute para não precisar indenizar pessoas que trabalhavam nas praias próximas a foz do rio Doce, justificando que não tinham vínculo legal provando seus empregos? O livro traz muitas e muitas dessas histórias nos mais de 600 quilômetros percorridos pela lama.
O estômago remói, porém, quando se lê com atenção as minuciosas páginas nas quais as questões técnicas da tragédia são contadas, com a sucessão de prepotência, pouco caso e incompetência que marcam a atuação da empresa. Um exemplo quase singelo, diante de tudo, é que, mesmo com a bomba relógio que era a barragem de Fundão, a exíguos 8 quilômetros de Bento Rodrigues, a empresa pretendia construir uma nova barragem a 1,2 quilômetro da localidade. Para tanto, já tinha projeto e encomendou uma pesquisa detalhada sobre a comunidade e seus moradores, para avaliar como seria (em termos de custos e convencimento) removê-los de lá, sem, em nenhum momento, dizer aquelas pessoas o que estava acontecendo.
Foi muito difícil continuar a ler o livro (que é gigante, com suas 462 páginas) acompanhando, ao mesmo tempo, o desenrolar das notícias de Brumadinho, mas acho que deveria ser leitura obrigatória, sobretudo para jornalistas e engenheiros de qualquer área. Se tivesse lido antes da nova tragédia, porém, já estaria preparada e não me surpreenderia, pois a conclusão óbvia (e explicitada por especialistas e promotores entrevistados) é que só não se tinha a data e o local exato, mas a maneira como as coisas foram tratadas pelas empresas e pelas autoridades (governos de todas as instâncias) só poderia desembocar em novos desastres.
Entre os fatores mais gritantes, a impunidade é talvez o que mais salta aos olhos e é o que deixa tranquilos todos os envolvidos na cadeia da mineração. Saber que, após Mariana, o lobby das empresas continuou e foi exitoso para abrandar as exigências para o licenciamento ambiental das barragens, que os promotores que investigavam o caso foram afastados, que a sociedade civil não teve voz em nenhuma das ações de remediação, são alguns dos fatores que anunciam as novas desgraças.
Por isso, achei muito feliz o nome do evento realizado ontem (14/02), no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), Brumadinho pós-Mariana: lições não aprendidas, embora as informações e conclusões dos pesquisadores sobre as causas do desastre, sucessão e reincidência de falhas, exclusão social e vulnerabilidade das barragens sejam uma imensa infelicidade.
O Brasil é um lugar renitente em não aprender com seus erros e fazer de tudo para manter tudo igual. Se comove com a desgraça alheia por alguns dias, mas logo depois tudo volta a ser como antes. As mentes e corações costumam vibrar mais forte para o mercado e o capital. Não demora nada para a sociedade esquecer o drama dos milhares de atingidos e voltar a se preocupar com o impacto do preço da Vale na Bolsa de Valores e a tachar o Movimento dos Atingidos por Barragem, que está lá dando apoio a mais essas vítimas, de baderneiro, que é como o establishment atual (mais acintosamente) vê os movimentos sociais. É por saber disso que o presidente da Vale, Fabio Schvartsman, já se sente à vontade para dizer que a empresa é uma “joia que não pode ser condenada pelo rompimento da barragem” e não se digna, nem por hipocrisia, a se levantar para homenagear os mais de 300 mortos pela lama de sua empresa, durante a audiência na Câmara dos Deputados.

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