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Amianto deveria ser discussão encerrada


Deixei o pudor de lado e assumo meu lado chata de galocha. Em um mundo cada vez mais idiotizado, onde quem olha o copo meio vazio é destinado à marginalização, estou me encaminhando pra lá. Me desculpem os felizes de plantão, mas o copo do Brasil está meio vazio e está furado. São tantos os absurdos e retrocessos, que ficar colecionando limões para fazer limonada vai acabar afogando todo mundo. Dos descalabros mais óbvios, do tipo armar a população e deixar criancinhas a voar soltas nos carros, todos os neopoderosos tiram da cartola pacotes de maldades menos populares, mas também nocivos, que podem passar desapercebidos no tsunami de incêndios que a sociedade civil organizada – ou, em bom português, que pensa – tem que apagar.
Fibra de amianto: imagina ela no seu pulmão!
Uma desses pacotes, que parecem não morrer nunca, é a volta da discussão para a liberação da produção de amianto, encabeçada por políticos de Goiás, onde fica a mina finalmente fechada em 2017, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu a produção, comercialização e uso desse minério cancerígeno no Brasil. Esse é um assunto que me toca, por ter acompanhado, como repórter da Agência Estado, no início dos anos 2000, a luta dos doentes e familiares dos mortos em consequência desse produto nefasto para que fosse banido do país.
Na época, a causa dessas pessoas foi abraçada pela auditora-fiscal do Trabalho Fernanda Giannase, que comprou a briga e, por conta de seu trabalho destemido – chegou a receber ameaças inclusive envolvendo seus familiares – já recebeu vários prêmios nacionais e internacionais. Naquele iniciozinho de século, a luta era para proibir o amianto estado a estado, já que a proibição nacional era quase impossível. Hoje, os defensores, pelo que vi dando uma pesquisada, pois não acompanhei mais o assunto, visam ao mercado asiático – maior consumidor de amianto atualmente, já que na Europa e em boa parte dos países ele é proibido.
E por que é proibido? Porque causa uma diversidade de doenças para quem o aspira, entre elas asbestose, placas pleurais, mesotelioma e câncer de pulmão. E aí está o cinismo de seus defensores. Enquanto está inerte em caixas d’água, como revestimento de paredes ou em telhas, ele realmente não faz mal. Todos os doentes que entrevistei se contaminaram nas minas ou eram familiares de mineiros. Seu pó é tão nocivo que adoece até quem simplesmente lava uma roupa suja com ele. Controlar o descarte de todo o amianto que já foi usado já me parece um desafio imenso.
Para completar, nesta época onde mentiras e fatos se misturam com desfaçatez, se publica (https://congressoemfoco.uol.com.br/saude/entenda-porque-senadores-lutam-para-liberar-o-amianto-no-brasil/) sem questionar o depoimento, por exemplo, do senador Vanderlei Cardoso (PP-GO) dizendo este absurdo: “Eu já tenho 56 anos de idade e tomo água de caixa d´água, desde criança, de amianto. Morei muito tempo debaixo de telha de amianto e nunca tive problema”. Eu também!!! Esse senhor saber muito bem qual é o problema real desse minério, que pode ser facilmente substituído por outros materiais em rigorosamente tudo para o qual é utilizado.
Um exemplo pungente dos riscos envolvidos no uso do amianto é o World Trade Center de Nova York, derrubado no 11 de setembro de 2001. Nessa época, como eu cobria o tema, me ligaram para contar que grande parte do pó liberado pela queda dos prédios derrubados pelos terroristas era de amianto, que revestia todas as paredes do complexo, ironicamente para proteger contra o fogo. Cheguei até a fazer uma nota sobre isso, que se perdeu diante daquela tragédia sem tamanho. Mas eis que, algum tempo depois, vemos manchetes como esta: “Pulverização do WTC liberou substâncias nocivas em Manhattan; mais policiais morreram por poeira do que diretamente nos ataques”. Em 2011, Jerry J. Borg, que morreu em 15 de dezembro de 2010 depois de adoecer por conta da inalação do amianto liberado na queda das torres, foi reconhecido como a vítima 2.753 dos ataques. Bem, para os que acham que é pouco para proibir que se crie alguns empregos e alguns pouquíssimos ganhem muito dinheiro, só tenho a lamentar. Sou mesmo chata de galocha.

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