Mais uma manhã clara e fria. Silenciosa. Ajeito as cobertas e me pergunto porque coloquei o despertador. A sensação é de estar em mais um Dia da Marmota do filme Feitiço do Tempo. Sei que será tudo igual, nada de novo à vista. Desde que cheguei tento manter uma rotina, como indicam os manuais que inundam as redes sociais, mas às vezes – muitas vezes – o corpo quer e a mente não, e vice-versa.
Fazer exercício, preparar as refeições, fingir que trabalho, eis o plano. Na minha lista ainda estão cuidar das plantas, estudar inglês, tocar piano, escrever e falar com amigos. Quase rio, por saber que não farei quase nada disso. Levanto relutante e passo alguns minutos sem conseguir decidir se tomo banho ou faço uma caminhada. Pego o celular para dar uma olhadinha e lá se vão 40 minutos de nada no Facebook, Twitter, Instagram e Paciência – muita paciência. Vou tomar café de pijama mesmo.
Decido por caminhar pelo menos meia hora em volta do campo de futebol. Dez minutos para cada lado para não ficar tonta – é só um campinho. A grama amassada marca o trajeto que, de qualquer maneira, é o único possível. Ouvir música alivia e algumas vezes chego a dançar. Mas é também quando choro, principalmente porque ninguém está vendo. Hoje não dancei nem chorei. Entrei em uma fase de resignação. Não sei qual virá depois.
O banho é quente e demorado para evitar que o dia realmente comece. Decidir que roupa colocar, dentre a meia dúzia que trouxe comigo no que pareceu (e foi) uma fuga, demora muito mais do que o necessário, acabo com a mesma que estava ontem, coisa que jamais faria antes. Mas coloco brincos e colar, passo batom e rímel e, quando estou finalmente pronta, é hora de ir pra cozinha.
Vou até a horta nos fundos da casa, escolho algumas verduras e temperos e penso em meus privilégios. Sem saber se agradeço ou me culpo, sigo para minha jornada de quase duas horas que é a mais prazerosa do dia. Cozinheira tardia e bissexta, me sinto uma alquimista ao transformar, em tão pouco tempo, uma ideia de cardápio em realidade concreta e ver os resultados imediatamente, quando nos reunimos à mesa. A refeição começa leve, elogios à comida e boas lembranças, até que alguém solta, inadvertidamente, algum comentário sobre a situação ou algum plano irrealizável. A conversa trivial se torna irônica, depois exaltada. Dejavu.
A operação conjunta para arrumar a cozinha é rápida, coreografada. Cada um segue para suas atividades. Vou para a rede. Meia hora de leitura que se transforma em uma. Tantos anos pra ler On The Road e resolvo começar justamente agora. Devo me odiar.
Crio coragem e, finalmente, encaro o trabalho. Há textos para editar e revisar, prazos a cumprir. Meu cérebro deletou a noção de produtividade. Concentração se tornou algo abstrato demais. Escondo o celular pra não ter perigo de me distrair. Todo o esforço me consome por, no máximo, duas horas. Lembro das formigas... ah, as formigas... não posso me esquecer das formigas.
Mais ou menos um mês após nossa chegada, me interessei pelo jardim. No começo, apenas molhava as plantas com o regador. Passei a tirar espécies invasoras, podar galhos secos, afofar a terra. Mas, de repente, percebi que vivia em cima de um grande formigueiro, uma megalópole subterrânea e biodiversa, com uma população de diferentes tamanhos, técnicas construtivas e modos de trabalho, que tomou conta do terreno sem que eu percebesse.
Não que eu não soubesse que elas existissem. Apenas era tolerante, achava que também tinham lugar ao sol – e sua cota de terra e vegetação. Acreditava que fossem, como grupo, inofensivas. Quando estendia minha toalha para tomar sol e elas me incomodavam, mudava de lugar e esquecia delas. Ledo engado. Com o tempo, se tornaram ousadas, não mais se preocupavam em disfarçar sua atuação nefasta e agora não sei como retomar meu território. Elas se portam como maioria e têm o poder.
Fui estudar como enfrentá-las sem agredir todo o resto. O que adianta eliminar as formigas e, ao mesmo tempo, envenenar a horta, o jardim, os pássaros e os demais insetos? Comecei com água fervente – e pareceu eficiente -, mas me senti como uma tirana sanguinária. Não me fez bem. Ultimamente, borrifo uma solução de água, detergente e vinagre, espalho arroz cru pelo gramado – li que elas carregam para o formigueiro para alimentar seus fungos, e o arroz fica tóxico quando umedece -, e despejo toda a borra de café que produzimos. Devo, pelo menos, irritá-las.
Decido fazer a inspeção do dia, mas percebo que já é hora do café da tarde, cada dia mais cedo, à medida que o inverno avança e o pôr-do-sol adianta. É o momento sagrado de reverenciar. Sentada na varanda, vejo o céu amarelar, depois alaranjar até chegar a um vermelho vivo. Beleza absoluta e melancólica. Fico imóvel, hipnotizada. Até que tudo fica escuro e frio. Antes, ficava para ver as estrelas e a lua, mas o quentinho de dentro agora é mais atrativo.
À noite, tudo fica mais difícil. Ver ou não ver o Jornal Nacional? É melhor saber ou imaginar? Qual o nível de angústia aceitável? Decido pela ignorância, pelo menos hoje. O jantar é silencioso. Estamos todos abatidos, com saudade da vida. Assisto uma comédia, para tentar digerir tudo e retardar o momento de deitar. Que é bom, porque sonho muito, mas ruim, porque às vezes acordo assustada e demoro a voltar a dormir. Sei que mais um Dia da Marmota me espera.
Fazer exercício, preparar as refeições, fingir que trabalho, eis o plano. Na minha lista ainda estão cuidar das plantas, estudar inglês, tocar piano, escrever e falar com amigos. Quase rio, por saber que não farei quase nada disso. Levanto relutante e passo alguns minutos sem conseguir decidir se tomo banho ou faço uma caminhada. Pego o celular para dar uma olhadinha e lá se vão 40 minutos de nada no Facebook, Twitter, Instagram e Paciência – muita paciência. Vou tomar café de pijama mesmo.
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Jardim dividido com as formigas. |
O banho é quente e demorado para evitar que o dia realmente comece. Decidir que roupa colocar, dentre a meia dúzia que trouxe comigo no que pareceu (e foi) uma fuga, demora muito mais do que o necessário, acabo com a mesma que estava ontem, coisa que jamais faria antes. Mas coloco brincos e colar, passo batom e rímel e, quando estou finalmente pronta, é hora de ir pra cozinha.
Vou até a horta nos fundos da casa, escolho algumas verduras e temperos e penso em meus privilégios. Sem saber se agradeço ou me culpo, sigo para minha jornada de quase duas horas que é a mais prazerosa do dia. Cozinheira tardia e bissexta, me sinto uma alquimista ao transformar, em tão pouco tempo, uma ideia de cardápio em realidade concreta e ver os resultados imediatamente, quando nos reunimos à mesa. A refeição começa leve, elogios à comida e boas lembranças, até que alguém solta, inadvertidamente, algum comentário sobre a situação ou algum plano irrealizável. A conversa trivial se torna irônica, depois exaltada. Dejavu.
A operação conjunta para arrumar a cozinha é rápida, coreografada. Cada um segue para suas atividades. Vou para a rede. Meia hora de leitura que se transforma em uma. Tantos anos pra ler On The Road e resolvo começar justamente agora. Devo me odiar.
Crio coragem e, finalmente, encaro o trabalho. Há textos para editar e revisar, prazos a cumprir. Meu cérebro deletou a noção de produtividade. Concentração se tornou algo abstrato demais. Escondo o celular pra não ter perigo de me distrair. Todo o esforço me consome por, no máximo, duas horas. Lembro das formigas... ah, as formigas... não posso me esquecer das formigas.
Mais ou menos um mês após nossa chegada, me interessei pelo jardim. No começo, apenas molhava as plantas com o regador. Passei a tirar espécies invasoras, podar galhos secos, afofar a terra. Mas, de repente, percebi que vivia em cima de um grande formigueiro, uma megalópole subterrânea e biodiversa, com uma população de diferentes tamanhos, técnicas construtivas e modos de trabalho, que tomou conta do terreno sem que eu percebesse.
Não que eu não soubesse que elas existissem. Apenas era tolerante, achava que também tinham lugar ao sol – e sua cota de terra e vegetação. Acreditava que fossem, como grupo, inofensivas. Quando estendia minha toalha para tomar sol e elas me incomodavam, mudava de lugar e esquecia delas. Ledo engado. Com o tempo, se tornaram ousadas, não mais se preocupavam em disfarçar sua atuação nefasta e agora não sei como retomar meu território. Elas se portam como maioria e têm o poder.
Fui estudar como enfrentá-las sem agredir todo o resto. O que adianta eliminar as formigas e, ao mesmo tempo, envenenar a horta, o jardim, os pássaros e os demais insetos? Comecei com água fervente – e pareceu eficiente -, mas me senti como uma tirana sanguinária. Não me fez bem. Ultimamente, borrifo uma solução de água, detergente e vinagre, espalho arroz cru pelo gramado – li que elas carregam para o formigueiro para alimentar seus fungos, e o arroz fica tóxico quando umedece -, e despejo toda a borra de café que produzimos. Devo, pelo menos, irritá-las.
Decido fazer a inspeção do dia, mas percebo que já é hora do café da tarde, cada dia mais cedo, à medida que o inverno avança e o pôr-do-sol adianta. É o momento sagrado de reverenciar. Sentada na varanda, vejo o céu amarelar, depois alaranjar até chegar a um vermelho vivo. Beleza absoluta e melancólica. Fico imóvel, hipnotizada. Até que tudo fica escuro e frio. Antes, ficava para ver as estrelas e a lua, mas o quentinho de dentro agora é mais atrativo.
À noite, tudo fica mais difícil. Ver ou não ver o Jornal Nacional? É melhor saber ou imaginar? Qual o nível de angústia aceitável? Decido pela ignorância, pelo menos hoje. O jantar é silencioso. Estamos todos abatidos, com saudade da vida. Assisto uma comédia, para tentar digerir tudo e retardar o momento de deitar. Que é bom, porque sonho muito, mas ruim, porque às vezes acordo assustada e demoro a voltar a dormir. Sei que mais um Dia da Marmota me espera.
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