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A foto do Che

Demorei muito para entender, se é que cheguei a isso, a fixação que minha geração tinha pela foto de Che Guevara na adolescência. Mesmo com minhas parcas informações de aluna de escola pública no final da ditadura – e numa casa onde ninguém ousava conversar sobre nada que realmente importava –, não via naqueles meninos que portavam camisetas, cadernos e pôsteres do guerrilheiro cubano (só fui saber que era argentino muito depois), nada em comum com ele. Acredito que muitos nem sabiam de quem se tratava. Durante as aulas, pelo menos, nunca foi dita uma palavra sobre revolução cubana ou seus líderes – nem pra falar mal.
O famoso retrato pelo qual o Korda nunca cobrou royalty.

Aquele olhar terno e feroz ao mesmo tempo, decidido e cheio de esperança, só me capturou já na faculdade, quando a luta pelas Diretas Já indicavam que, veja só, de repente, um mundo novo e mais justo seria possível. Todos esses anos depois e muitas contradições não resolvidas – como a dicotomia de Cuba permanecer uma ditadura até hoje e o Brasil, depois de tanta luta por democracia, progressos reais e problemas praticamente insolúveis, estar em uma relação séria (de alianças compradas) com o fascismo -, ainda me pergunto o que aquela imagem quer nos dizer.
Topei com essa questão novamente ao visitar a exposição Agora ou Nunca – Devolução de Maureen Bisilliat no Instituto Moreira Salles (IMS). A mostra traz uma série de vídeos produzidos pela fotógrafa desde os anos 1960. Dentre eles há uma entrevista com o autor da foto, o fotógrafo cubano Alberto Korda, que me capturou. As perguntas feitas por Maureen e que Korda não tinha como responder eram se ele tinha noção, ao tirá-la, do poder que teria e o que ela tem de tão especial. O fotógrafo acredita que tenha capturado o idealismo e a convicção de Che Guevara. O que a foto representa, porém, parece ir além do personagem.
Batizada de Guerrilheiro Heroico por seu autor, falecido em 2001, a foto foi tirada em 5 de março de 1960 em Havana, durante um evento dedicado às cem vítimas da explosão do navio “La Coubre”, que vinha da Bélgica para Havana com armas e munições para a então recente Revolução Cubana e cujos líderes consideraram uma sabotagem. Che tinha na época 31 anos e a foto só foi publicada sete anos depois, logo após sua morte na Bolívia. A fotografia foi então projetada em um prédio durante um discurso de Fidel Castro e depois transformada em um pôster por uma editora italiana, que vendeu dois milhões de cópias em seis meses.
O retrato é considerado a imagem mais reproduzida do Século XX, na frente até da Marilyn Monroe com a saia levantada e a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci.

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