Pular para o conteúdo principal

Será que as árvores são as vilãs?

 


Se você mora na cidade de São Paulo, tenho um pedido pra te fazer. Quando estiver na calçada, olha pra cima. Veja quantos postes você enxerga e a quantidade de fios amarrados neles. Dá uma olhada e tente contar as camadas e, mesmo considerando o número de empresas de telefonia e internet disponíveis no seu bairro (já que energia elétrica é monopólio), imagina se faz sentido a quantidade de fios que passa por ali. E, mais do que isso, perceba o volume de fios amarrados de qualquer jeito, enrolados, caídos pelos postes ou meio pendentes entre um poste e outro e dos quais é preciso se desviar ao andar pela rua. Se você não achar que está diante de um serviço muito malfeito, realizado com um descaso inimaginável, olha de novo, pois você não prestou atenção.

Li um artigo muito comprido e bastante complexo do @ayubio, um especialista em tecnologia, e o assunto não é simples, mas há vários fatores responsáveis por tudo isso. Segue um resuminho do que entendi:

Os cabos elétricos costumam ser acinzentados e ocupam o topo dos postes. A 1,5 metro para baixo, os cabos de cor preta com esse aspecto emaranhado são as fibras óticas, atendendo a internet fixa, a internet móvel (levando o sinal até as torres) e as bases terrestres da Starlink (que também dependem de fibra ótica). Para que outras empresas possam pendurar qualquer coisa nos postes, a distribuidora privada de energia (como a ENEL) precisa aprovar o projeto técnico e cobra pelo uso do poste. Como essa não é uma atividade lucrativa para a distribuidora, tratam os pedidos de autorização do setor de telecomunicações com desdém e demoram muito para aprovar. Com isso, as empresas cansam de esperar e vão pendurando tudo sem autorização mesmo, isso se solicitaram autorização. Como os cabos de fibra ótica não podem ser reaproveitados, caso depois não recebam autorização, as empresas deixam os fios por lá mesmo (acredito que se fazem uma reparação, também agem do mesmo jeito: colocam um fio novo e o antigo fica por lá). Só que tem um limite de peso que os postes aguentam e não tem ninguém calculando isso. Segundo o artigo, “esses projetos precisam ser meticulosos pois cada cabo pendurado no poste gera tração, aumentando a tendência de tombamento de postes”. Não precisa ser genial para inferir que, com isso, um vento mais forte ou um galho maiorzinho de árvore sobre os fios derruba os postes.

Por que os fios não são enterrados? É simples: porque custa dinheiro. Em São Paulo, apenas 1% das ruas têm cabeamento subterrâneo. E quem poderia fiscalizar tudo isso e incentivar ou ter um plano para enterrar os fios? A prefeitura, é claro. Mas é muito mais fácil culpar as árvores.

Agora, vamos olhar para cima novamente e ver como as árvores são tratadas. Como os fios passam por meio delas e como as podas são também malfeitas, colaborando para que fiquem fragilizadas e propensas a cair. E, podemos, ainda, pensar que, com a crise climática, mais ventos fortes e tempestades assolarão a cidade. Mas as árvores são fundamentais para ajudar as águas a escoarem e para minimizar a sensação térmica do aumento da temperatura. E os fios, não são também fundamentais? São, mas podem ser enterrados e ficar bonitinhos, protegidos de ventanias e chuva.

Só mais uma olhadinha pra cima, e vamos imaginar juntos como nossas ruas ficariam bonitas sem esses fios horrorosos. Como sobraria espaço para mais árvores e mais sombra. Será que somos capazes de imaginar São Paulo assim? Me parece que não. É mais fácil pensar em coisas como privatizar e sucatear mais e mais serviços públicos e discutir com quem as pessoas querem transar ou se uma mulher pode fazer o que quer com seu próprio corpo.


(Fotos feitas na frente da minha casa, que nem é dos piores locais, a maioria é bem mais terrível)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Clubes de leitura: revoluções individuais a partir dos livros

Quem me conhece sabe da importância que participar de um clube de leitura tem na minha vida. Especial para mim e para as demais membras, o Círculo Feminino de Leitura-CFL, ao invés de se tornar rotina, foi ganhando maior espaço em nossas vidas ao longo do tempo e transfomou nossa maneira de ver o mundo. Por isso, ao receber da Nivia, uma de minhas companheiras de CFL, uma foto do livro Clubes de Leitura – Uma aposta nas pequenas revoluções (Solisluna Editora), de Janine Durand e Luciana Gerbovic, fiquei com coceira nos olhos e fui correndo comprar. As autoras escrevem a partir de suas experiências de mediadoras de clubes de leitura e abordam o potencial da literatura como caminho para libertação pessoal. Advocam que a literatura é um Direito Humano, mas pouco respeitado no Brasil. As duas são articuladoras do Programa Remição em Rede, que fomenta clubes de leitura em unidades prisionais para remição da pena por meio da leitura. Trazem depoimentos tocantes de pessoas transformadas pelo

Calorão no inverno parece bom, mas não é

Lembro de acordar e sentir cheiro de orvalho, encontrar o chão do quintal e as calçadas molhadas de manhãzinha. Era assim todos os dias em São Paulo. E lembro de como odiava os dias garoentos do outono e o frio no meu aniversário, no final de julho. E de reclamar durante agosto inteiro de me levantar cedo para ir para a escola. Detestava ter que me agasalhar demais, às vezes com toca e luvas, e ainda me sentir gelada. Mas tudo isso foi há muito tempo, quando eu era criança. Já na faculdade de Geografia, aprendi com a professora Magda Lombardo o que eram as ilhas de calor e como a urbanização levou embora o orvalho e a garoa da cidade, aumentando sua temperatura. Nada que se compare, porém, com este inverno atípico que assistimos agora, sem saber se ele é apenas excepcional ou o novo normal. A questão é que, para a maior parte das pessoas, que gostam de sol e calor, este tem sido um inverno bom, e estou entre elas. É delicioso não precisar usar casacões, poder dormir, no máximo, com

Com os incas, aprendi que distopias acontecem

Sempre quis conhecer Machu Picchu pela incrível beleza da cidadela, mas pouco sabia do império inca, além do fato de ter se estendido por grande parte da costa oeste do continente sul-americano e ter desaparecido com a chegada dos espanhóis. Descobrir que o Peru é um país inca – ou pelo menos o estado de Cusco com certeza o é -, foi uma surpresa. Encontrei uma população preocupada em recuperar todos os aspectos de sua cultura usurpada há 500 anos pelos conquistadores europeus e rever cada pedacinho de sua história. Machu Picchu, a joia que os espanhóis não acharam. O que ouvi de guias, motoristas, vendedores, artesão, garçons e todas as pessoas com que tive contato é uma versão ainda impensável no Brasil, país onde seus habitantes originais foram praticamente exterminados e os poucos que resistiram ainda precisam lutar por seu reconhecimento e, no momento, por garantia de vida. Lá, a população majoritariamente de descendência índia tem mais facilidade em se identificar com aque