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O ponto máximo da evolução

 

Só sei dizer sobre nós mesmos, não tenho informação sobre outros povos, mas o brasileiro é muito autorreferente. Adoramos saber a opinião de estrangeiros, principalmente os ilustres, sobre nós. Ficamos indignados quando vemos alguém trocar nossa capital ou confundir nossos ritmos musicais. Quer ver meu marido furioso, é um artista ou político de outro país falar mal do Brasil em alguma entrevista. Parece que a pessoa falou sobre e para ele. 

Da minha parte, não tenho inclinações patrióticas. Nos vejo como muito ignorantes sobre outros povos e países e, assim, por que esperar que os demais saibam sobre nós? Mas é curioso nos ver refletidos na visão alheia, mesmo na ficção. Lendo o romance Plataforma, do francês Michel Houellebecq, me deparei com uma descrição da minha cidade, São Paulo, bastante peculiar.

O livro é uma grande crítica ao capitalismo global e sobra pra todo mundo. Ao longo o texto, Michel Renault, um funcionário público francês de meia-idade, cínico e frustrado, ataca o modo de vida e a hipocrisia europeus, o turismo internacional, o trabalho, as relações interpessoais, o islamismo e muito mais. O parágrafo sobre São Paulo me chamou a atenção por sua gratuidade no texto, não tinha nada a ver com a história. Um dos personagens – um executivo da área de turismo -, do nada, enquanto dirige, traz uma reminiscência, que mais parece uma interferência do autor:

“Uma vez estive em São Paulo: foi lá que a evolução chegou ao seu ponto máximo. Aquilo não é mais uma cidade, é um território urbano que se estende a perder de vista, com favelas, gigantescos edifícios de escritórios e residências de luxo cercadas de guardas armados até os dentes. São mais de vinte milhões de habitantes, muitos dos quais nascem, vivem e morrem sem nunca sair dos limites do seu território. As ruas são muito perigosas, mesmo de carro a gente corre o risco de ser assaltado no sinal vermelho ou perseguido por uma quadrilha motorizada: as mais bem equipadas têm até metralhadoras e lança-foguetes. Para se deslocar, os homens de negócios e as pessoas ricas utilizam quase exclusivamente helicópteros; há locais de pouso por toda parte, no topo dos prédios de bancos e dos imóveis residenciais. No nível do solo, a rua é território dos pobres – e dos bandidos.”

E continua dirigindo, acrescentando apenas: “Ando cheio de dúvidas. Cheio de dúvidas, cada vez mais frequentes, sobre o meu interesse pelo mundo que estamos construindo.”

É sem dúvida uma descrição crua. Vejo alguns exageros de uma pessoa que conheceu a cidade pela perspectiva dos muito ricos. Por que ele acha que os paulistanos nascem, vivem e morrem sem deixar os limites da cidade? São Paulo parece mesmo uma metrópole de filme distópico, mas não estamos presos como nas séries Divergente ou The Last Of Us.  Não conheço nenhum rico que só se locomova de helicóptero, mas vários com carros blindados cujos filhos nunca andaram pelas ruas da cidade e só conhecem parques e transportes públicos no exterior.

Sei que São Paulo não é o lugar mais seguro do mundo e há locais realmente assustadores. Não me aventuraria sozinha pela Cracolândia, mas não me sinto insegura ao circular pelas ruas, tanto a pé como de carro, com os cuidados que tomaria em qualquer metrópole do mundo, não pegaria meu celular, por exemplo. Acho bizarro mostrar meus documentos e tirar fotos para entrar em edifícios comerciais ou mostrar minhas digitais quando chego ao clube. Passar por dois portões para visitar alguém ou, pior, entrar em minha própria casa, é terrível. Falar com um porteiro perdido em um call center em algum local remoto do país ou, mais recente, fazer com antecedência reconhecimento facial e digital para entrar no prédio de uma amiga, me faz ter certeza de vivermos mesmo em uma distopia, em boa parte, na minha opinião, fabricada pela indústria do medo. Deve ter gente ganhando muito dinheiro com o pavor alheio.

Como o personagem de Houellebecq, ando cheia de dúvidas, cada vez mais frequentes, sobre o meu interesse pelo mundo que estamos construindo.

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