Tenho baixa resistência à
crueldade. Quando se trata de mulheres e crianças, é quase fobia. Por isso essa
discussão sobre o hediondo projeto de supercriminalização do abordo me deixou
paralisada, assim como foi difícil engrenar na leitura de A Tatuagem de
Pássaro, romance da iraquiana Dunya Mikhail. O livro é uma espécie de O
Conto da Aia (de Margaret Atwood), mas real e atual. Começa com a invasão
de partes do Iraque e da Síria pelo Estado Islâmico, em 2014, e a escravização
das mulheres não muçulmanas - não que a vida destas últimas tenha ficado boa.
Acompanhamos a história a
partir de Helin, da minoria de origem curda iazidi, cuja religião traz
elementos do islamismo, do cristianismo e do zoroastrismo, sequestrada em
Mossul pelo Daich (nome pelo qual o estado islâmico ficou conhecido no mundo
árabe), mas chamado de “quadrilha” no livro. Helin e as demais mulheres, aí
incluídas as meninas a partir de 9 anos, se tornaram mercadoria vendida pela
internet, que pode ser trocada ou devolvida quantas vezes o comprador quiser.
Enquanto posse/prisioneira, ela pode ser espancada e estuprada ao bel prazer do
“fiel”, que alega a estar salvando do inferno.
Baseada em relatos de
sobreviventes colhidos por Dunya (hoje morando nos Estados Unidos),
principalmente a partir de um apicultor que montou uma rede para libertar essas
mulheres, a autora já avisa antes de começar o texto: “Qualquer semelhança com
a realidade de quem hoje vive entre nós não é mera coincidência.” Em nome de
deus, esses homens escravizam e assassinam, determinam o que as pessoas devem
vestir, comer e fazer em cada minuto de suas vidas. Tenho dificuldade de
acreditar, mas o livro dá a entender que pelo menos parte da quadrilha acredita
mesmo estar a serviço de um bem maior. Os filhos de Helin, levados
compulsoriamente para treinamento militar, quase foram convencidos disso, só
voltaram a si ao assistir a um vídeo em que seu próprio pai é degolado.
O festival de horrores só
diminui quando a autora muda o foco dos algozes para os que, do lado de fora ou
infiltrados, tentam ajudar a salvar os prisioneiros. O alívio pelos que
conseguem escapar é pouco quando pensamos em tantos que continuam nessa situação
e em como o extremismo não é uma realidade tão distante assim.
Assistindo na semana
passada à imagem bizarra de uma mulher encenando um feto sendo abortado para
marmanjos entre hipócritas e constrangidos, em pleno Senado Federal, senti
asco, mas também medo, porque quem é capaz de se prestar a isso não tem limite
algum.
Ver a mobilização nas
redes e, muito melhor, nas ruas contra esse show de misoginia que temos
assistido no Congresso Nacional, travestido de um moralismo que sabemos que
essas pessoas não têm, é um alento. Lembro da minha tristeza ao participar das passeatas
do #elenão e escutar, de gente que supunha consciente, que a mobilização das
mulheres teria sido culpada pelo crescimento do bolsonarismo. Ao contrário,
acredito que a falta de apoio irrestrito à causa das mulheres funciona como um
aval para a não liberação do aborto no país até hoje e suas consequências
cruéis para as mulheres pobres e vulneráveis. Esse projeto de lei - assim como
saber como é o estado islâmico e outros lugares no mundo odiadores de mulheres
por dentro - só está aí para nos lembrar que sempre pode piorar.
(No vídeo, passeata conta o projeto de lei, em São Paulo)
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