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Ursula K. Le Guin pensa mundos onde o anarquismo e o gênero neutro deram certo


 

As mulheres ainda são tão minoritárias na ficção científica, que apenas este fato seria suficiente para se ler Ursula K. Le Guin. Minha razão para recomendá-la, porém, é outra. Li dois livros da autora, Os Despossuídos e A Mão Esquerda da Escuridão, e me chamou a atenção nenhum deles trazer um futuro terrível ou ameaçador para a humanidade, espalhada em diferentes planetas universo afora.

Em uma época na qual olho pela janela e o céu esfumaçado me faz sentir estar em Blade Runner (Ridley Scott, 1982) e ver o noticiário me transporta para o pavor de Inteligência Artificial (Steven Spielberg, 2001) ou O Exterminador do Futuro (James Cameron, 1991), é bom ler, para variar, algo do gênero que não seja distopia dizendo pra mim “Hasta la vista, baby!”. Nesses dois livros de Le Guin, escritos há mais de 50 anos, os personagens vivem em condições climáticas extremas, mas são adaptados e mantêm uma relação de respeito pela natureza que, mesmo hostil, os permite sobreviver.

Em Os Despossuídos, a história se passa em dois planetas que orbitam juntos uma mesma estrela. O maior é Urras, onde as condições naturais são ótimas, mas os países estão sempre em guerra e as desigualdades sociais e sexuais correm soltas. Um grupo de anarquistas faz um acordo para não ser preso e é enviado para o planeta menor (ou satélite), onde as condições naturais são adversas (falta água, há tempestades de vento etc.), mas conseguem criar uma sociedade igualitária e sem autoridades. Anarres não é uma sociedade perfeita, mas como o cientista Shevek vai confirmar ao viajar para Urras, mais justo e melhor para se viver.

Estes planetas fazem parte de uma espécie de ONU planetária, chamada Ekumen, da qual a Terra faz parte como mais um entre os membros. Sua função é compartilhar conhecimento entre os planetas, não há um governo central nem tentativas de dominação.

No segundo livro, A Mão Esquerda da Escuridão, um terráqueo é enviado como uma espécie de diplomata a um planeta longínquo para convidar seus habitantes a participar do Ekumen. O planeta é conhecido no Universo como Inverno pelas condições extremas de temperaturas geladas, no limite para a existência de vida humana. Mais uma vez, seus habitantes (que não sabiam da existência de vida em outros planetas) são muito bem adaptados tecnologicamente às condições climáticas.

Esse livro ficou mais conhecido, porém, em razão de seus humanos serem andróginos, sem sexo definido, e todos poderem escolher ser do gênero masculino ou feminino nas relações sexuais, assim como engravidar e ter filhos. Mais uma vez, não são seres perfeitos e suas sociedades são variadas e com vários problemas, embora não conheçam o conceito de guerra.

Os livros de Ursula K. Le Guin, embora tenham algumas incongruências – como o fato, reconhecido mais tarde pela autora, de seus personagens andróginos serem tratados no masculino –, têm o mérito de pensar sociedades diferentes, sem os princípios da dominação a qualquer custo ou da exploração dos recursos naturais até a exaustão. Posso estar enganada, mas essas crenças, presentes em praticamente todas as obras de ficção científica e no nosso imaginário civilizatório, me parecem uma visão masculina do mundo que tem nos levado a uma distopia da vida real. Seria muito bom termos mais ficcionistas, cientistas, idealistas e - por que não? - políticos pensando em soluções e mundos diferentes.

Fotos:

Céu cinza no inverno quente de São Paulo.

Capas dos livros.


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